Para o filósofo, invasão, por mais emocional e ingênuo que possa parecer, não força contra o desenvolvimento, e ao mesmo tempo nada tem de conservador
Por Paulo
Ghiraldelli
Não foram os jovens mascarados que entraram no
Instituto Royal, na cidade paulista de São Roque. Nada de Black Blocs. Os atos
que logo depois, na TV, foram classificados por algumas autoridades como sendo
de “vandalismo” e até de “terrorismo” (as palavras da moda), ou seja, o resgate
dos beagles, foram executados por senhoras e meninas loirinhas de classe média,
todos sem máscara. Estavam do modo que Lula disse que ele fazia seus protestos,
de cara limpa.
Os ativistas entraram para resgatar os cães por uma
razão simples: tinham avisado a ANVISA, que cuida do assunto, que havia pessoas
do Royal sumindo com os cães, exatamente para que a averiguação que viria não
visse os maus tratos, marcados nos beagles. Como a ANVISA nada fez e os
cachorros estavam sendo retirados, talvez inclusive para serem mortos, os
ativistas fizeram o que qualquer pessoa com responsabilidade para com a vida de
inocentes faria.
Não demorou muito e as redes sociais, em conjunto
com a TV convencional, foram preenchidas pelo debate sobre o assunto. Contra o
resgate surgiram os argumentos de sempre, que eu já havia visto na boca de
ensaístas conservadores, por ocasião de episódios semelhantes: não se pode
“interferir no caminho da ciência”, pois sem testes com animais todos nós pagaremos
o preço de ficarmos à mercê de epidemias e coisas do gênero. E mais: os
ativistas que invadiram o Royal estão “movidos por pura emoção e ingenuidade”,
querem “salvar cachorrinhos”, por falta do que fazer e por não terem
responsabilidade com o progresso. Só faltou, ou melhor, não faltou não,
apareceu sim aquele “argumento das baratas”: “vocês salvam cachorrinhos, e as
baratas?”.
No sábado (19) de manhã os ativistas voltaram a São
Roque, para protestar diante do Instituto Royal. Os Black Blocs, um dia antes,
já haviam dito por meio de site na internet, que estariam presentes para
proteger os ativistas. Dito e feito. E a proteção foi mesmo providencial. Pois
a polícia não fez por menos, chutou senhoras e garotas e começou o
empurra-empurra. Aí os Black Blocs reagiram. Era de se esperar que tendo
começado, iriam terminar, e então invadiram o Royal e deram fim do aparato dito
de pesquisa, mas que era, afinal, só de tortura mesmo.
A crítica às garotas que invadiram o Royal para
resgatar os beagles está correta quando diz que o ato foi emocional. Foi mesmo.
Também estaria certa se dissesse que essa emoção tem a ver com algo provocado
pelos filmes Disney - não há como não lembrar aqui do episódio célebre e
clássico nesse caso, o da morte da mãe do Bambi. A crítica continuaria
acertando se dissesse que Disney apenas amoldou para o campo popular - e
popularesco - o sentimentalismo romântico do século XIX, aquele que faz a
natureza ganhar vida e, com sua bondade e providência, se põe em confronto com
a cultura, esta sim maldosa e corrupta. Esse sentimento, sabemos bem, tem suas
raízes no romantismo avant la lettre de Rousseau, ainda no século XVIII. Nada
disso podemos negar. No entanto, não é necessário acompanhar os críticos - a
meu ver conservadores - quando eles colocam sinal negativo nisso tudo.
Que Rousseau falou do “bom selvagem”, enaltecendo a
natureza e criticando o progressismo da ciência, da cultura e, enfim, da
civilização, e isso em pleno século Iluminista, e não romântico, não há dúvida.
Que o romantismo serviu, depois, como uma força conservadora, de crítica ao
iluminismo, isso também é verdade. Todavia, o que não é verdade é que hoje o
romantismo continue servindo ao conservadorismo e, menos verdade ainda, que
ele, ao alimentar as emoções, o emocionalismo até, seja antirracional e
antirracionalista.
Aliás, a dicotomia Razão versus Emoção, nem tem
mais por que fazer sucesso. O ato das garotas, de invadir o Royal salvando os
beagles, por mais emocional que possa ser e por mais ingênuo que possa parecer,
não força nenhum passo contra o desenvolvimento, e ao mesmo tempo nada tem de
conservador. Um pouco de dialética aí não faz mal a ninguém.
Entre outros, Marx nos ensinou a pensar sobre esse
tipo de coisa. Movimentos de protesto contra apetrechos modernos às vezes
ajudam os industriais a melhorarem a técnica de suas empresas, para perderem ou
empatarem no lucro do curto prazo, mas para ganharem no longo prazo. Por isso
que após a pressão nas empresas, forçando-as a tomar medidas contra a poluição,
ou empurrando-as para atitudes favoráveis ao chamado “direitos dos animais”,
passado um tempo, são consideradas pelas próprias empresas como algo que as fez
dar uma salto tecnológico interessante.
Quanto mais os ativistas reclamam de entidades como
o Instituto Royal, inclusive com procedimentos radicais (a lição Black Bloc de
“ação direta” para fomentar o simbolismo serviu!), mais os testes vão sendo
reconhecidos como obsoletos. Sabemos hoje que muitas indústrias não executam
mais testes com animais, pois eles se tornaram inócuos. A maior parte dos
testes, atualmente, já são feitos por simulação, por meio de programas
computacionais. Isso é até melhor, do ponto de vista técnico, que a prática no
animal, pois é um procedimento mais ágil, observável e seguro. Ora, se a
motivação inicial para se chegar a isso foi a emoção, por sua vez, o processo
foi plenamente racional, sendo o final tanto racional quanto emocional.
Racional no final porque melhora tudo que tinha de melhorar. Emocional no final
porque satisfaz todos nós que queremos que a crueldade diminua em todos os
níveis e setores.
Desse modo, se temos Rousseau e Disney na base do
impulso das garotas que invadiram o Royal, não temos que repreender o filósofo
genebrino e o desenhista empreendedor americano. A tradição que eles criaram e
alimentaram não trouxe uma ação retrógrada, mas uma ação de progresso moral e
intelectual. Não se produziu com emoção algo irracional, mas algo que melhora a
vida de todos nós à medida que podemos enxergar um horizonte em que a vida de
um habitante em nosso planeta não tem que se desgraçar para que a vida de outro
seja suave.
Sei bem que quando se consegue um ganho desse tipo,
há ainda os que se irritam. Afinal, nunca podemos satisfazer aqueles que
juraram que irão rezar de joelhos só no altar da crueldade. Essa gente tem um
ódio danado daqueles que podem estar falando a outros que há algo de utópico no
mundo, e que é válido.
Paulo
Ghiraldelli Jr., 56 filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
Fonte:
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