Por: Leonardo Boff
Biologicamente nós humanos, somos seres carentes
(Mangelwesen). Não somos dotados de nenhum órgão especializado que nos garanta
a sobrevivência ou nos defenda de riscos, como ocorre com os animais. Alguns
biólogos chegam a dizer que somos "um animal doente”, um "faux pas”,
(um passo em falso), uma "passagem” (Übergang) para outra coisa, por isso
nunca fixado, inteiros; mas, incompletos.
Tal verificação nos obriga a continuamente a
garantir a nossa vida, mediante o trabalho e a inteligente intervenção na
natureza. Deste esforço, nasce a cultura que organiza de forma mais estável as
condições infraestruturais e também humano-espirituais para vivermos
humanamente em sociedade.
Acresce ainda outro dado, presente também em todos
os seres do universo; mas, que no nível humano, ganha especial relevância.
Vigoram duas forças: a primeira é autoafirmação, a segunda, a integração. Elas
atuam sempre em conjunto num equilíbrio difícil e sempre dinâmico.
Pela força da autoafirmação cada ser se centra em
si mesmo e seu instinto é conservar-se, defendendo-se contra todo tipo de
ameaça contra sua integridade e a sua vida. Ninguém aceita morrer. Quer viver,
evoluir e se expandir. Essa força explica a persistência e a subsistência do
indivíduo.
Precisamos neste ponto superar totalmente o
darwinismo social segundo o qual somente os mais fortes e adaptáveis triunfam e
permanecem. Essa é uma meia verdade que está na contramão do processo
evolucionário. Este não privilegia os mais fortes e adaptáveis. Se assim fora,
os dinossauros estariam ainda entre nós. O sentido da evolução é permitir que
todos os seres, também os mais vulneráveis, expressem virtualidades latentes
dentro da evolução. Esse é o valor da interdependência de todos com todos e da
solidariedade cósmica. Todos, fracos e fortes, se entreajudam para coexistir e
coevoluir.
Pela segunda força, a da integração, o indivíduo se
descobre envolto numa rede de relações, sem as quais, sozinho como indivíduo,
não viveria nem sobreviveria. Existe o individuo; mas, ele vem de uma família,
se insere num grupo de trabalho, mora numa cidade e habita um país com um tipo
de organização social. Ele está ligado a toda esta cadeia de relações. Assim
todos os seres são interconectados e vivem uns pelos outros, com os outros e
para os outros. O indivíduo se integra, pois, por natureza, num todo maior.
Mesmo que o indivíduo morra, o todo garante que a espécie continue permitindo
que outros representantes venham a nos suceder.
Sabedoria humana é reconhecer o fato de que chega
certo momento na vida no qual a pessoa deve se despedir para deixar o lugar,
até fisicamente, a outros que virão.
O universo, os reinos, os gêneros e as espécies e
também os indivíduos humanos se equilibram entre estas duas forças: a da
autoafirmação do indivíduo e a da integração num todo maior. Mas esse processo
não é linear e sereno. Ele é tenso e dinâmico. O equilíbrio das forças nunca é
um dado, mas um feito a ser alcançado a todo o momento.
É aqui que entra o cuidado responsável. Se não
cuidarmos ou pode prevalecer a autoafirmação do indivíduo à custa de uma
insuficiente integração e então predomina a violência e a autoimposição ou, ao
contrário, pode triunfar a integração a preço do enfraquecimento e até anulação
do indivíduo e então ganha a partida o coletivismo e o achatamento das
individualidades. O cuidado aqui se traduz na justa medida e na autocontenção para
não privilegiar nenhuma destas forças.
Efetivamente, na história social humana, surgiram
sistemas que ora privilegiam o eu, o indivíduo, seu desempenho, sua capacidade
de competição e a propriedade privada como é o caso da ordem capitalista ou ora
prevalece o nós, o coletivo, a cooperação e a propriedade social como é o caso
do socialismo real que foi ensaiado na União Soviética e ainda persiste, em
parte, na China.
A exacerbação de uma destas forças em detrimento da
outra, leva a desequilíbrios, conflitos, guerras e tragédias sociais e
ambientais. Com referência ao meio ambiente tanto o capitalismo quanto o
socialismo foram depredadores e pioraram as condições de vida da maioria das
populações. Em ambos os sistemas o cuidado responsável desapareceu para dar
lugar à vontade de poder, ao enfrentamento entre ambos e até a brutalidade nas
relações mundiais visando a corrida armamentista e a dominação do curso do
mundo.
Qual é o desafio que se dirige ao ser humano? É o
cuidado responsável de buscar o equilíbrio construído conscientemente e fazer
desta busca um propósito, uma atitude de base e até um projeto político.
Portador de consciência e de liberdade, o ser humano possui esta missão que o
distingue dos demais seres. Só ele pode ser um ser ético, um ser que cuida de
si e que se responsabiliza pela comunidade de vida. Ele pode ser hostil à vida,
colocar-se, como indivíduo dominador, sobre as coisas. Mas pode ser também o
anjo bom que se sente integrado na comunidade de vida, junto com as coisas.
Depende de seu empenho manter o equilíbrio entre a autoafirmação e a integração
num todo e não permitir que forças dilaceradoras dirijam a história.
Por ser ético, coloca-se ao lado daqueles que tem
dificuldades em se autoafirmar e assim sobreviver e impedir uma integração que
destrói as individualidades em nome de um coletivo amorfo. Eis uma síntese
sempre a ser construída.
Diretoria do
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