terça-feira, 1 de julho de 2014

Classes e luta de classes: hegemonia e poder de Estado

Por Wladimir Pomar



Projetos e situações muito diferentes não são particularidades da sociedade brasileira da atualidade. Tomemos como exemplo as experiências da socialdemocracia europeia e do capitalismo estadunidense. Elas demonstram, cada vez mais, que as sociedades capitalistas avançadas são incapazes de organizar a proteção social com base no princípio de justiça social. Esta se choca com a necessidade de reprodução ampliada do capital, reprodução só possível com o aumento da lucratividade.

Nessas sociedades, ao invés de as necessidades se traduzirem em direitos de cidadania e darem lugar a sistemas universais e igualitários de proteção social, elas estão sendo traduzidas em retirada de tais direitos e demolição dos sistemas de proteção social. A pobreza deixa de ser contextualizada como resultante das relações de produção e exploração para ser cristalizada como redução crescente dessas relações e ausência de oportunidades de trabalho.

Nelas, a democracia formal continua aparentando um sistema igualitário de oportunidades e participação nas decisões políticas. Porém, a inclusão social e a redução das desigualdades tendem a se tornar, cada vez mais, utopias fora de lugar. Uma minoria extremamente rica, dona dos meios modernos de locomoção e de vida, se torna cada vez mais distante da realidade de massas crescentemente subjugadas a viver de forma injusta e desigual.

É difícil dizer até que ponto, nessas sociedades industrializadas ou em desindustrialização do Ocidente, tanto a fração industrial quanto as demais frações da classe trabalhadora assalariada e da pequena-burguesia suportarão passivamente o processo de subproletarização a que estão sendo submetidas pelo capital corporativo. Os movimentos anticapitalistas estão crescendo, mas usando táticas que fazem lembrar os ludistas e os cartistas dos séculos 18 e 19. E parcelas deles tendem para a direita política.

Paralelamente, o aumento da criminalidade é um sinal evidente da degradação dessas classes, e de sua transformação em subproletariado. Surtos de loucura em que “pessoas normais” se transformam em assassinos estão se tornando fenômenos banais. Nessas condições, é preciso examinar com atenção o que há de diferente nas sociedades capitalistas desenvolvidas e naquelas, como o Brasil, em desenvolvimento.

Para Grzybowski, o debate sobre essas alternativas de desenvolvimento seriam “marginais”. Um “novo-desenvolvimentismo” seria, na verdade, o velho modelo de desenvolvimento capitalista, “produtivista e consumista”. Ele reconhece que, no Brasil, isso se dá “com inclusão social”, tendo o Estado como o indutor de políticas que combinem desenvolvimento econômico e social. Mas critica que o objetivo maior das políticas sociais seria a inclusão monetária no mercado de consumo. Renda e crédito retroalimentariam e puxariam o crescimento da economia, a mesma economia geradora da desigualdade social, pobreza e miséria.

Ele se vê, porém, constrangido a ressalvar que não estaríamos mais naquela situação de capitalismo selvagem da ditadura. Nem estaríamos praticando o liberalismo submisso da agenda do ajuste, com redução do Estado, desregulação, flexibilização dos direitos e muito livre mercado dos anos 90.

Teriam ocorrido avanços importantes, como a criação de milhões de empregos com direitos trabalhistas e com redução da informalidade, aumento do salário mínimo legal, ampliação da cobertura de seguridade social e expansão fenomenal de acesso ao crédito.

Apesar de tudo isso, os ganhos em justiça social teriam sido feitos sem mudar a lógica do desenvolvimento capitalista. Tal desenvolvimento ainda seria crescimento a qualquer custo, com relações profundamente desiguais. O Brasil poderia ser visto hoje como um exemplo tardio de socialdemocracia de bem com o capitalismo. Para sair disso, Grzybowski sugere políticas que impliquem “redistribuir ativos e riquezas”, criando outro tipo de economia e de poder, já que as políticas sociais adotadas minimizam efeitos, mas não mudam suas causas.

Ele propõe radicalizar a democracia, ter um país de cidadania plena, ampliar os bens comuns e do bom viver, com sustentabilidade social e ambiental. Colocar na agenda o aumento do imposto de renda, com novas alíquotas para marajás, rentistas e capitalistas. Desconcentrar a terra, atualmente em mãos de uns 70 mil “renovados” latifundiários do agronegócio, que açambarcaram uns 200 milhões de hectares.

É nessa mesma linha que Elísio Estanque sonha com a classe trabalhadora brasileira tendo acesso a uma posição estável, a um emprego qualificado e a um futuro auspicioso. O problema é que Grzybowski e Estanque parecem supor que um governo de esquerda possa mudar a lógica capitalista. Isto é, que assumindo uma pequena parcela do Estado ele possa obrigar o capitalismo nacional e estrangeiro a subordinar-se não só à redistribuição de renda, mas também à distribuição de ativos e riquezas, criando “outro tipo de economia e poder”.

Eles parecem supor que o aumento do imposto de renda sobre marajás, rentistas e capitalistas, a desconcentração da terra, a radicalização da democracia com cidadania plena, a ampliação dos bens comuns e do bom viver, e a sustentabilidade social e ambiental, possam resultar da “conquista da hegemonia”. Isto é, daquilo que Gramsci entendia como direção política, moral e intelectual.

Parecem não ter em conta que governo é apenas uma parte do Estado. E que, para mudar a lógica do desenvolvimento capitalista na amplitude proposta por eles, é necessário, além do governo, ter o conjunto dos aparatos do Estado subordinados a uma hegemonia voltada para tais mudanças. Mudanças que o coronel Boggo certamente chamaria de comunistas, embora na prática sejam democrático-burguesas ou, na melhor das hipóteses, de transição socialista.

Lembrando Comparato, o nível oculto do Estado brasileiro é formado pelo grande empresariado. Ou seja, pelo conjunto da burguesia. Esta continua mantendo sua hegemonia sobre a maior parte da sociedade brasileira, além de um domínio, ainda não medido adequadamente, sobre os diversos aparatos do Estado. Sua atual democracia manteve a estrutura que lhe permite impor uma representação social restrita no parlamento, considerando um acinte qualquer aumento da participação popular, a exemplo de sua reação diante da ampliação de conselhos populares.

Na economia, uma parte da burguesia nacional, em associação com a burguesia estrangeira, mantém crescente monopólio empresarial. Tem o poder de impor ao país um desenvolvimento excludente e subordinado a interesses corporativos. Na sociedade, a burguesia continua enfrentando a luta de classes, mesmo de caráter econômico e por melhorias sociais, com a mesma repressão de quase sempre. Bastou o governo tentar adotar medidas, mesmo tímidas, de seguir um desenvolvimento com maior redistribuição de renda, menor centralização capitalista e democratização econômica, social e política, para que parcelas crescentes da burguesia se levantassem em guerra.

Henrique Meirelles, que foi presidente do Banco Central, um dos arautos dessa guerra, afirma que o Estado brasileiro teria aumentado sua participação na economia de forma implacável. Os recursos arrecadados da sociedade pelo governo, por meio de tributos, teriam saltado de 14,2% do PIB, nos anos 1940, para 33% entre 2000 a 2010. Segundo ele, mais de um terço do que os brasileiros produzem seria canalizado ao Estado por meio de impostos, do aumento do papel das empresas estatais e da dívida pública. Nas concessões atuais de aeroportos, portos, estradas e campos de petróleo, por exemplo, haveria forte controle estatal, desde a fixação de retorno do investimento privado ao controle dos concessionários.

Meirelles jura que a avaliação histórica demonstra como errada a ideia de que o aumento do papel do Estado seria a melhor defesa do interesse público no desenvolvimento econômico. Na Europa, o avanço do Estado teria causado ineficiências e distorções, que começaram a ser revertidas nas últimas décadas via privatizações e recuo estatal. Na Ásia, a evolução se daria na mesma direção, com a crescente abertura da economia chinesa, que ressaltaria a força do capital privado no crescimento do país.

Ou seja, Meirelles considera seus leitores um bando de idiotas. Não saberiam que as privatizações e recuos estatais dos anos 1980 e 1990, na Europa e no Brasil, estão na origem do recrudescimento das crises que passaram a assolar, a partir de 1973, as economias subdesenvolvidas e, desde 2007, as economias desenvolvidas. E que a força do capital privado na China só tem sido positiva porque se dá sob planejamento e controle do Estado, o mesmo ocorrendo em vários outros países asiáticos e africanos.

Portanto, o que está sendo revertido em diversas regiões do mundo é o modelo totalmente privatista. Como muitos dos econometristas da atualidade, Meirelles joga com dados esparsos na tentativa de justificar a luta que a burguesia brasileira, associada à de outros países, começou a travar contra o que chama de linha estatizante, tanto do governo Dilma quanto de outros governos na América Latina, África e Ásia.

Desconsiderar isso, e sugerir que a elevação da esquerda a governos de países capitalistas, ainda por cima atrasados do ponto de vista do desenvolvimento das forças produtivas, seja o mesmo que conquistar a hegemonia, significa elevar a utopia à política para enfrentar a luta de classes real. Na prática, nessa luta é preciso associar a luta pela hegemonia (direção política, moral e intelectual) à luta pela conquista do poder de Estado.

Mesmo estando à frente de governos, a esquerda ainda precisará travar um árduo combate para assumir a direção da maior parte dos aparatos do Estado. E, mesmo assim, a luta de classes para mudar a lógica do desenvolvimento capitalista ainda será árdua enquanto as forças produtivas continuarem atrasadas.




Fonte:



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