Por Frei
Betto*
Havana, 9º Congresso Internacional de
Educação Superior, 12 de fevereiro de 2014
O bloco
socialista se desintegrou antes de completar um século. A União Soviética se
esfacelou e os países que a formavam adotaram o capitalismo como sistema
econômico e sinônimo de democracia. Tudo aquilo que o socialismo pretendia e,
de alguma maneira, alcançara – redução da desigualdade social, garantia do
pleno emprego, saúde e educação gratuitos e de qualidade, controle da inflação
etc. – desapareceu para dar lugar a todas as características desumanas do
neoliberalismo capitalista: a pessoa encarada, não como cidadã, e sim como
consumista; o ideal de vida reduzido ao hedonismo; a exploração da força de
trabalho e a apropriação privada da mais-valia; a especulação financeira; a degradação
da condição humana através da prostituição, da indústria pornográfica, da
criminalidade e do crescente consumo de álcool e drogas.
É nosso
dever, como homens e mulheres de esquerda, nos perguntarmos quais as causas do
desaparecimento do socialismo na Europa. Sabemos todos que há um amplo leque de
causas, que vão da conjuntura econômica de um mundo bipolar hegemonizado pelo
capitalismo às pressões bélicas em decorrência da Guerra Fria.
Entre as
tantas causas destaco uma de caráter subjetivo, ideológico, que diz respeito ao
nosso tema: o papel do educador na formação política dos educandos.
Devo dizer
que, antes da queda do Muro de Berlim, tive a oportunidade de visitar a China e
a Polônia; duas vezes a Tchecoslováquia e a Alemanha Oriental; e três, a União
Soviética.
O
socialismo europeu cometeu o erro de supor que seriam naturalmente socialistas
pessoas nascidas em uma sociedade socialista. Como se a concepção marxista e os
valores altruístas fossem geneticamente transmissíveis. Esqueceu-se da afirmação
de Marx de que a consciência reflete as condições materiais de existência, mas
também influi e modifica essas condições. Há uma interação dialética entre
sujeito e realidade na qual ele se insere.
Em
primeira instância, e não em última, nascemos todos autocentrados. “O amor é um
produto cultural”, teria dito Lênin. Resulta do desdobramento de nosso ego, o
que se obtém através de práticas que infundam valores altruístas, gestos
solidários, ideais coletivos pelos quais a vida ganha sentido e a morte deixa
de ser encarada como fracasso ou derrota.
Segundo
Lyotard, o que caracteriza a pós modernidade é não saber responder a questão do
sentido da vida. Este o papel do educador: não apenas transmitir conhecimentos,
facilitar pedagogicamente o acesso ao patrimônio cultural da nação e da
humanidade, mas também suscitar no educando o espírito e a militância
revolucionários, a busca do homem e da mulher novos espelhados, aqui no caso de
Cuba, nos exemplos de Martí, Che Guevara e Fidel.
Ora, isso
jamais será possível se não se propicia ao magistério um processo de formação
permanente. É um equivoco julgar que professores de um país socialista, ainda
que filiados ao partido que encabeçou a Revolução, sejam revolucionários.
Nenhum de nós é totalmente invulnerável às seduções capitalistas, aos atrativos
do individualismo, à tentação de acomodamento e indiferença frente ao
sofrimento alheio e às carências coletivas.
Estamos
todos permanentemente sujeitos às influências nocivas que satisfazem o nosso
ego e tendem a nos imobilizar quando se trata de correr riscos e abrir mão de
prestígio, poder e dinheiro. A corrupção é uma erva daninha inerente ao
capitalismo e ao socialismo. Jamais haverá um sistema social no qual a ética se
destaque como virtude inerente a todos que nele vivem e trabalham.
Se não é
possível alcançar a utopia de ética na política, é preciso conquistar a ética
da política. Criar uma institucionalidade política que nos impeça de “cair em
tentação” quanto à falta de ética. Isso só será possível em um sistema no qual
inexistam a impunidade e o desejo de corromper e aceitar corrupção. Tal
objetivo não se alcança por meio de repressão e penalidades, embora sejam
necessárias. O mais importante é o trabalho pedagógico, a emulação moral,
tarefa na qual os professores desempenham papel preponderante, na medida em que
lidam com a formação da consciência e da prática das novas gerações.
Um
professor revolucionário deve ter atitudes pautadas pela construção de uma
identidade humana na qual haja adequação entre essência e existência. Esse
professor deve administrar sua disciplina escolar contextualizando-a na
conjuntura histórica na qual se insere.
O papel
número um do educador não é formar mão de obra especializada ou qualificada
para o mercado de trabalho. É formar seres humanos felizes, dignos, dotados de
consciência crítica, participantes ativos do desafio permanente de aprimorar o
socialismo, que considero o nome político do amor. Para tanto, cabe a quem
educa suscitar nos educandos apreço aos valores que estimulam o altruísmo, a
solidariedade, o serviço desinteressado às causas coletivas, ainda que a fonte
desses valores não seja estritamente ideológica, mas também religiosa ou
espiritual.
Caminhar
nesse sentido implica vencer alguns desafios da atual conjuntura. O primeiro
deles é superar o avassalador processo neoliberal de desistorização da
história. Sem perspectiva histórica não há consciência nem projetos políticos.
Ao enunciar que “a história acabou”, o neoliberalismo quer nos incutir a
convicção de que o tempo é cíclico, como para os antigos gregos, e qualquer
tentativa de historicizá-lo é inútil, até mesmo porque a humanidade, como
apregoam os neoliberais, já atingiu o seu mais alto patamar civilizatório,
consubstanciado no sistema capitalista, capaz de comportar a única democracia
possível...
Martí já
havia pressentido essa questão e, portanto, insistido na educação como processo
de formação da consciência histórica: “Para estudiar las posibilidades de la
vida futura de los hombres, es necesario dominar el conocimiento de las
realidades de su vida pasada. Del progreso humano se habla tanto que a poco más
va a parecer vulgaridad hablar de él. No se puede predecir cómo progresará el
hombre, sin conocer cómo ha progresado (...)” (José Martí, “Exposición de la
eletricidad”, La América, Nova York, março de 1883, T. 8, p. 347).
Um segundo
desafio a vencer é o mimetismo cultural, próprio da consciência colonizada, que
julga o opressor modelo a ser imitado pelo oprimido, como bem denunciou Paulo
Freire em suas obras. Sempre observei, nas três décadas em que retorno com
frequência a Cuba, que aqui muitos se comparam aos padrões dos EUA, e não aos
da América Latina. Tivessem todos os cubanos a consciência de que esta nação,
comparada ao conjunto da América Latina, é mais avançada em saúde, educação,
direitos sociais e igualdade de acesso aos bens essenciais à vida, com certeza
seria bem menor o nível de insatisfação daqueles que adotam como padrão de
desenvolvimento o consumismo estadunidense, sem levar em conta os milhares de
cidadãos dos EUA excluídos de livre acesso aos bens essenciais à vida. Há hoje
mais de 40 milhões de pessoas ameaçadas pela miséria e mais negros nas prisões
daquele país do que escravos no século XIX!
Um
terceiro desafio é, neste mundo hegemonizado pela mercantilização de todas as
dimensões da vida e de todos os aspectos da natureza, cultivar a
espiritualidade. “Es necesario mantener los hombres en el conocimiento de la
tierra y en la perdurabilidad y trascendencia de la vida” (Martí, “Maestros
ambulantes”, La América, Nova York, maio de 1884, T. 8, p. 288).
Martí
antecipa Paulo Freire ao enfatizar que o educando deve ser o protagonista do
processo educativo. “(...) no hay mejor sistema de educación que aquel que
prepara [al] niño a aprender por si” (José Martí, La América, Nova York,
novembro de 1883, T. 8, p. 421). É o que ele repetirá em La Edad de oro: “[...]
los hombres deben aprenderlo por si mismos, y no creer sin preguntar, ni hablar
sin entender, ni pensar como esclavos lo que les mandan pensar otros [...]”
(José Martí, Un paseo por la tierra de los anamitas, T. 18, p. 459).
Paulo
Freire, em sua Pedagogia do oprimido, irá acentuar que a verdadeira educação é
a que conscientiza o educando sobre as contradições do mundo, sejam elas
estruturais, superestruturais ou interestruturais. Essas contradições, uma vez
conscientizadas, desacomodam o educando, impelindo-o a se tornar agente ou protagonista
de transformação da realidade. Para alcançar esse objetivo, Freire aponta 10
sintomas do que ele qualifica de “educação bancária” e que precisam ser
evitados ou erradicados: 1) o educador é que educa; os educandos, os que são
educados; 2) o educador é que sabe; os educandos, os que não sabem; 3) o
educador é o que pensa; os educandos, os que apreendem os pensamentos como
verdades absolutas; 4) o educador é o que diz a palavra; os educandos, os que a
escutam docilmente; 5) o educador é o que disciplina; os educandos, os
disciplinados; 6) o educador é o que opta e prescreve sua opção; os educandos,
os que seguem a prescrição; 7) o educador é que atua; os educandos, os que têm
a ilusão de que atuam na atuação do educador; 8) o educador escolhe o conteúdo
programático; os educandos jamais são ouvidos nesta escolha, se acomodam a ele;
9) o educador identifica a autoridade do saber com sua autoridade funcional,
que opõe antagonicamente à liberdade dos educandos; estes devem adaptar-se às
determinações daquele; 10) o educador, finalmente, é o sujeito do processo; os
educandos, meros objetos. (Paulo Freire, Pedagogia do oprimido, Rio, Paz e
Terra, 1974, PP. 67-68).
A educação
deve ser dialógica, conscientizadora, problematizadora, contextualizadora, de
modo a superar a contradição educador-educando e tornar-se um exercício
permanente de prática da liberdade. Em seu folheto Guatemala, publicado no
México em 1878, Martí elogia a pedagogia da Universidade Central da Guatemala:
“E os jovens se animam. Criticam o professor, o texto, o livro de consulta.
Rejeitam a imposição magistral, o que também é bom. Desejam saber para crer.
Aspiram à verdade por meio da experiência; maneira de tornar sólido o talento,
firmes as virtudes e enérgico o caráter.” (Citado in Diego Jorge González
Serra, Martí e a psicologia, São Paulo, Escrituras, 2001, p. 81).
Uma
educação que se reduz a ser mera ortofonia, repetição incessante de conceitos
petrificados pela voz da autoridade, destitui o educando de senso crítico e
imprime nele a ideia de que a Revolução é um fato histórico do passado, e não
um perene desafio à cada nova geração. Para que haja educandos revolucionários
é preciso que o processo educativo seja igualmente revolucionário, o que
significa transformar a escola em um laboratório no qual se estabeleça uma
interconexão estratégica entre todas as disciplinas, e o ensino esteja
permanentemente conectado às conjunturas nacional e internacional. O médico não
é apenas aquele que sabe lidar com o órgão enfermo, mas que também conhece as
causas sociais, históricas e psíquicas de produção das doenças e suscita em seu
paciente o vigor de combatê-las. O administrador não se resume a cuidar bem da
empresa que lhe foi confiada, mas também desperta nos funcionários o senso
ético do serviço que a empresa presta ao público, impedindo desvios, corrupções
e desperdícios. O técnico em computação não é apenas quem domina o
funcionamento do equipamento eletrônico e procura aprimorá-lo, mas também quem
compreende o papel político das redes sociais, o poder da informática nas
relações entre nações, o risco de que a realidade virtual se descole sempre
mais, com o perdão da redundância, da realidade real.
Sabemos
todos que a Revolução Cubana se encontra em um momento crucial. Ao contrário do
Período Especial, imediatamente após a queda do Muro de Berlim e o
desaparecimento da União Soviética, o momento agora não é de extrema carência,
é de abundância de ideias, propostas e sugestões de como a Revolução fará jus
ao legado recebido de seus três grandes luminares – Martí, Fidel e Che – para
adaptar-se ao século XXI, preservando e melhorando sua ética de não exploração
do trabalho alheio e apropriação privada da riqueza; seus direitos sociais,
como alimentação, saúde e educação a todos, sem discriminações e perda de
qualidade; sua liberdade de pleno exercício e expressão do pensamento, da
criatividade artística, da convicção religiosa; sua moral, de preservação por
todos do que a todos pertence, erradicando a corrupção, o absenteísmo e a
dilapidação do patrimônio público; seu internacionalismo, incutindo nas novas
gerações o senso de solidariedade, serviço aos mais necessitados, partilha dos
talentos e dos bens.
Sabemos
todos que a Revolução enfrenta inimigos poderosos, como o bloqueio imposto pela
Casa Branca a Cuba; a injusta prisão dos cinco heróis cubanos nos EUA; a
pressão midiática neoliberal, eivada de preconceitos e ofensas; as dificuldades
de obtenção de créditos e de mercado para os produtos cubanos. O principal
inimigo, porém, não está lá fora. Está dentro de Cuba. E pode ser identificado
com facilidade: é a educação “bancária”; é o desânimo frente aos desafios; é o
individualismo que busca seu próprio proveito, sem considerar os direitos
coletivos; é a falta de cuidados com os bens públicos; é a indiferença frente
aos mais necessitados e envelhecidos; enfim, é o egoísmo que faz de cada um de
nós um vírus capaz de corroer e debilitar o organismo social sadio. Esse
inimigo interno é o mais perigoso e letal.
Felizmente
é também o mais fácil de se combater quando se adotam métodos eficazes de
educação libertadora, de emulação moral, de cultivo de espiritualidades que, a
cada dia, despertem em cada um de nós aquilo que mais almejamos e que Martí bem
resume nestas palavras: “(...) o dom do amor, que torna o gênio fecundo.” (La
América, Nova York, agosto de 1883).
*
Palestra feita por Frei Betto, em
fevereiro, no Congresso Mundial de Universidades 2014, realizado em Havana,
Cuba
Fonte:
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