Por Wladimir Pomar
A longa
duração do descenso das mobilizações sociais no Brasil está relacionada com a
transição pactuada da ditadura militar para uma democracia liberal burguesa de
amplitude até então desconhecida na história brasileira. Desde os anos 1980,
por exemplo, multiplicaram-se as promessas de universalização da cidadania e
dos direitos sociais. E partidos de esquerda, socialistas e comunistas,
assumiram parcelas do poder de Estado, como a chefia de governos municipais e
estaduais, e mesmo do governo federal.
Os
impactos dessas mudanças políticas sobre a luta de classes no Brasil ainda não
foram estudados em sua dimensão mais ampla. E se tornaram ainda mais complexos,
a partir de 2003, depois que Lula e o PT foram eleitos e assumiram o governo
central. O que levou Elísio Estanque a supor que, no Brasil, criou-se um
contexto social e socioeconômico todo ele novo. O padrão de
referência seria a anterior condição precária, a informalidade generalizada e a
miséria de uma força de trabalho até há pouco desconhecedora de quaisquer
direitos.
No
entanto, se quisermos examinar mais detalhadamente o que Estanque chamou de padrão
de referência anterior, verificaremos que não houve qualquer trabalho
específico, do governo ou de qualquer partido de sua base política, que tenha
se debruçado sobre tal padrão anterior. Temos a noção vaga de que ele foi
marcado, entre outras coisas, pela estagnação econômica e pela crise política
em que a ditadura militar afundou, desde 1973, e pela devastação neoliberal dos
anos 1990.
No
entanto, aquelas estagnação e devastação vão muito além da condição precária,
da informalidade generalizada e da miséria da força de trabalho. Não temos
dados relativamente precisos das empresas industriais falidas, do sucateamento
da infraestrutura industrial e urbana, do deslocamento de empresas adquiridas
por corporações transnacionais, tanto do período ditatorial quanto do período
neoliberal. Assim como do brutal prejuízo causado pela venda de ativos estatais
e dos negócios escusos realizados no processo das privatizações neoliberais, e
da continuidade da mesma política repressiva militar contra os pobres e
marginalizados.
Além
disso, a suposição de um contexto social e socioeconômico todo ele novo não
condiz com a realidade dos 10 anos de governos dirigidos pelo PT. É verdade que
as privatizações selvagens e obscuras dos governos anteriores foram suspensas.
E que as empresas estatais voltaram a ter participação ativa na economia.
Também é verdade que ocorreu uma mudança de qualidade nos programas de transferência
de renda para milhões de pessoas vivendo na pobreza e na miséria, associada a
uma constante valorização do salário mínimo. Isso deu impulso à elevação do
consumo, e contribuiu para a retomada do crescimento econômico.
Porém,
apesar da campanha para demonstrar a emergência de uma nova classe
média, tivemos principalmente uma melhoria nos padrões de emprego, salário
e renda da classe trabalhadora assalariada. Isso permitiu a mobilidade, para
essa classe trabalhadora, de parte do subproletariado, como André Singer
prefere chamar a ralé, ou o lumpemproletariado, ainda excluído do mercado de
trabalho. É evidente que aquelas melhorias também se estenderam às parcelas da
pequena-burguesia urbana e rural produtoras de bens de consumo corrente. No mais,
não houve mudança significativa numa possível democratização da propriedade
privada. A economia permaneceu monopolizada por grandes grupos nacionais e
estrangeiros, tanto rurais quanto urbanos.
A rigor,
as atuais classes dos trabalhadores assalariados, da pequena-burguesia urbana e
rural e dos excluídos, ou do subproletariado, ralé ou lumpemproletariado, têm
uma noção muito vaga do que foi o padrão destruidor, de precariedade,
informalidade e miséria dos anos 1970 a 2000. Nessas condições, um dos fatos
mais marcantes de 2002 e anos posteriores parece ter sido o que Singer chamou
de realinhamento do subproletariado, historicamente conservador, ao petismo e
ao lulismo.
No
entanto, é duvidoso que isso tenha concorrido, como apontou Singer, com a
concordância de Grzybowski, para um compromisso de não subverter a
ordem. Mesmo porque, subverter a ordem não é algo que uma
classe, um partido ou um movimento possa decidir por sua conta, a não ser que
queira correr o risco de se ver isolada.
Subverter a ordem, como mostra a experiência histórica, depende da criação objetiva
de uma situação em que as classes em contradição chegaram a um nível de
conflito em que a ordem existente já não é mais aceita pelos de baixo, nem
garante o domínio dos de cima. A ordem tem que ser subvertida, seja num sentido
reformista ou revolucionário, seja num sentido conservador ou reacionário. Uma
situação desse tipo, porém, saiu do horizonte imediato desde 1985, com o fim da
ditadura, bem antes do realinhamento do subproletariado ao petismo e ao
lulismo.
Por um
lado, o subproletariado sempre foi conservador, com variantes reacionárias. Se
verificarmos a história dessa classe ou subclasse em outras sociedades onde o
capitalismo se desenvolveu, vamos verificar não só o conservadorismo, por
períodos mais ou menos longos, mas também uma forte tendência para o
banditismo, tanto urbano quanto rural. Essa tendência foi aproveitada pela
burguesia para atacar o proletariado e, em alguns casos, também a
pequena-burguesia, justamente para evitar a subversão da ordem. Por outro lado,
toda vez que ocorreram lutas revolucionárias, seja da burguesia contra os
feudais, seja do proletariado e do campesinato contra os feudais e a burguesia,
setores desse subproletariado se incorporaram a essa luta ao lado dos
oprimidos.
Por outro
lado, se considerarmos as diversas gerações proletárias brasileiras dos últimos
100 anos, constataremos que quase todas foram conservadoras. Seus movimentos
grevistas massivos, como os de 1917, 1953 e 1957, foram estritamente econômicos,
dentro dos limites capitalistas. E os de 1978 a 1989 tornaram-se políticos, mas
não foram capazes de romper a ordem liberal, em processo de reconstrução
associada à retirada estratégica da ditadura militar.
Nos
últimos 100 anos, as únicas classes que apresentaram movimentos com
características desubversão da ordem foram a pequena-burguesia
urbana e a pequena-burguesia rural. A primeira, com o movimento tenentista, que
desembocou na coluna Prestes e na insurreição liberal, entre os anos 1918-30.
Depois, com a insurreição comunista de 1935, e com as guerrilhas urbanas e
rurais dos anos 1960-70. A segunda, com os movimentos armados de posseiros em
Uauá, Contestado, Pau de Colher entre 1900-40, e Porecatu, Trombas, Formoso e
Pindaré, entre 1940-1960.
Portanto,
o problema, que permanece, de não subverter a ordem, não está
apenas relacionado ao subproletariado conservador. Está relacionado também com
o proletariado, com a pequena-burguesia urbana e rural, e com as classes
dominantes. Enquanto as classes subordinadas continuarem enxergando a
possibilidade de resolver seus problemas através dos mecanismos estatais
existentes, todas apresentarão traços conservadores mais ou menos intensos.
Essa
situação se tornou ainda mais complexa porque a expansão capitalista precisa
ser acompanhada de concessões democráticas para criar a ilusão de que todos têm
direitos e podem exercer a cidadania. Isso ocorreu tanto no período de retirada
estratégica da ditadura militar quanto no período de devastação neoliberal, em
ambos os casos parecendo que a burguesia tinha interesse em construir, como diz
Sonia Fleury, uma ordem política democrática fundada no status igualitário da
cidadania. Tudo isso, embora o Brasil jamais tenha convivido com uma degradação
econômica, social, ambiental e política tão vasta.
A
democracia virtual se tornou ainda mais enganosa com a Constituição de 1988,
que prometera universalizar os direitos sociais. O neoliberalismo conseguiu a
proeza de convencer a maior parte das classes sociais de que o Estado é
intrinsecamente ineficiente e caro, sendo melhor mercantilizar os serviços
sociais. Se examinarmos a herança deixada pelos governos neoliberais, desde
Collor, com a mercantilização da proteção social, verificaremos o apoio que
essa falácia ainda tem nas classes sociais trabalhadoras assalariadas e
pequeno-burguesas, o que pode fornecer uma medida do conservadorismo incrustado
na sociedade brasileira.
Nessas
condições, aquilo que Sonia Fleury chama de obliteração do debate sobre o poder
de classe e sua tradução como poder de consumo não é apenas uma amostra do
projeto político em curso. Ou seja, não pode ser tomada como uma tentativa de
substituir o conflito inerente às desigualdades de classe pelo consenso em
relação à ascensão social dada pelo consumo na sociedade de mercado. Afinal,
conforme reconhece Ivo Poletto, é correta a afirmação de que há milhões de
brasileiros que precisam chegar ao mercado para satisfazer necessidades
básicas.
Pode-se
até acreditar que o resgate e a promoção da dignidade e da cidadania dos que
ainda se encontram na miséria, criada pelas oligarquias e pelo Estado submetido
a seus interesses, não pode nem será realizado pela sua inclusão no mercado
capitalista. No entanto, seria um engano supor que o reconhecimento disso possa
se dar apenas do ponto de vista teórico. As classes subalternas só terão
consciência disso no aprendizado da luta de classes no processo de inclusão no
mercado capitalista e de luta para superar o capitalismo por meio de outro
projeto de sociedade.
Por isso,
bastou que tais classes voltassem a entrar em movimento, com as manifestações
de junho de 2013 e com algumas greves parciais, para que a maior parte da
burguesia e seus representantes políticos e militares retornassem à arena
da luta política. Aproveitando os 50 anos do golpe militar do dia da mentira de
1964, retornam brandindo os mesmos fantasmas que amedrontaram setores médios e
conservadores da população e fizeram o país mergulhar em duas décadas de
obscurantismo e crise sem paralelo, apesar de seu inicial e fugaz “milagre
econômico”.
Fonte:
Diretoria do
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