quarta-feira, 9 de abril de 2014

Classes e luta de classes: ainda classes em luta

Por Wladimir Pomar    

A longa duração do descenso das mobilizações sociais no Brasil está relacionada com a transição pactuada da ditadura militar para uma democracia liberal burguesa de amplitude até então desconhecida na história brasileira. Desde os anos 1980, por exemplo, multiplicaram-se as promessas de universalização da cidadania e dos direitos sociais. E partidos de esquerda, socialistas e comunistas, assumiram parcelas do poder de Estado, como a chefia de governos municipais e estaduais, e mesmo do governo federal.

Os impactos dessas mudanças políticas sobre a luta de classes no Brasil ainda não foram estudados em sua dimensão mais ampla. E se tornaram ainda mais complexos, a partir de 2003, depois que Lula e o PT foram eleitos e assumiram o governo central. O que levou Elísio Estanque a supor que, no Brasil, criou-se um contexto social e socioeconômico todo ele novo. O padrão de referência seria a anterior condição precária, a informalidade generalizada e a miséria de uma força de trabalho até há pouco desconhecedora de quaisquer direitos.

No entanto, se quisermos examinar mais detalhadamente o que Estanque chamou de padrão de referência anterior, verificaremos que não houve qualquer trabalho específico, do governo ou de qualquer partido de sua base política, que tenha se debruçado sobre tal padrão anterior. Temos a noção vaga de que ele foi marcado, entre outras coisas, pela estagnação econômica e pela crise política em que a ditadura militar afundou, desde 1973, e pela devastação neoliberal dos anos 1990.

No entanto, aquelas estagnação e devastação vão muito além da condição precária, da informalidade generalizada e da miséria da força de trabalho. Não temos dados relativamente precisos das empresas industriais falidas, do sucateamento da infraestrutura industrial e urbana, do deslocamento de empresas adquiridas por corporações transnacionais, tanto do período ditatorial quanto do período neoliberal. Assim como do brutal prejuízo causado pela venda de ativos estatais e dos negócios escusos realizados no processo das privatizações neoliberais, e da continuidade da mesma política repressiva militar contra os pobres e marginalizados.

Além disso, a suposição de um contexto social e socioeconômico todo ele novo não condiz com a realidade dos 10 anos de governos dirigidos pelo PT. É verdade que as privatizações selvagens e obscuras dos governos anteriores foram suspensas. E que as empresas estatais voltaram a ter participação ativa na economia. Também é verdade que ocorreu uma mudança de qualidade nos programas de transferência de renda para milhões de pessoas vivendo na pobreza e na miséria, associada a uma constante valorização do salário mínimo. Isso deu impulso à elevação do consumo, e contribuiu para a retomada do crescimento econômico.

Porém, apesar da campanha para demonstrar a emergência de uma nova classe média, tivemos principalmente uma melhoria nos padrões de emprego, salário e renda da classe trabalhadora assalariada. Isso permitiu a mobilidade, para essa classe trabalhadora, de parte do subproletariado, como André Singer prefere chamar a ralé, ou o lumpemproletariado, ainda excluído do mercado de trabalho. É evidente que aquelas melhorias também se estenderam às parcelas da pequena-burguesia urbana e rural produtoras de bens de consumo corrente. No mais, não houve mudança significativa numa possível democratização da propriedade privada. A economia permaneceu monopolizada por grandes grupos nacionais e estrangeiros, tanto rurais quanto urbanos.

A rigor, as atuais classes dos trabalhadores assalariados, da pequena-burguesia urbana e rural e dos excluídos, ou do subproletariado, ralé ou lumpemproletariado, têm uma noção muito vaga do que foi o padrão destruidor, de precariedade, informalidade e miséria dos anos 1970 a 2000. Nessas condições, um dos fatos mais marcantes de 2002 e anos posteriores parece ter sido o que Singer chamou de realinhamento do subproletariado, historicamente conservador, ao petismo e ao lulismo.

No entanto, é duvidoso que isso tenha concorrido, como apontou Singer, com a concordância de Grzybowski, para um compromisso de não subverter a ordem. Mesmo porque, subverter a ordem não é algo que uma classe, um partido ou um movimento possa decidir por sua conta, a não ser que queira correr o risco de se ver isolada.
Subverter a ordem, como mostra a experiência histórica, depende da criação objetiva de uma situação em que as classes em contradição chegaram a um nível de conflito em que a ordem existente já não é mais aceita pelos de baixo, nem garante o domínio dos de cima. A ordem tem que ser subvertida, seja num sentido reformista ou revolucionário, seja num sentido conservador ou reacionário. Uma situação desse tipo, porém, saiu do horizonte imediato desde 1985, com o fim da ditadura, bem antes do realinhamento do subproletariado ao petismo e ao lulismo.

Por um lado, o subproletariado sempre foi conservador, com variantes reacionárias. Se verificarmos a história dessa classe ou subclasse em outras sociedades onde o capitalismo se desenvolveu, vamos verificar não só o conservadorismo, por períodos mais ou menos longos, mas também uma forte tendência para o banditismo, tanto urbano quanto rural. Essa tendência foi aproveitada pela burguesia para atacar o proletariado e, em alguns casos, também a pequena-burguesia, justamente para evitar a subversão da ordem. Por outro lado, toda vez que ocorreram lutas revolucionárias, seja da burguesia contra os feudais, seja do proletariado e do campesinato contra os feudais e a burguesia, setores desse subproletariado se incorporaram a essa luta ao lado dos oprimidos.

Por outro lado, se considerarmos as diversas gerações proletárias brasileiras dos últimos 100 anos, constataremos que quase todas foram conservadoras. Seus movimentos grevistas massivos, como os de 1917, 1953 e 1957, foram estritamente econômicos, dentro dos limites capitalistas. E os de 1978 a 1989 tornaram-se políticos, mas não foram capazes de romper a ordem liberal, em processo de reconstrução associada à retirada estratégica da ditadura militar.

Nos últimos 100 anos, as únicas classes que apresentaram movimentos com características desubversão da ordem foram a pequena-burguesia urbana e a pequena-burguesia rural. A primeira, com o movimento tenentista, que desembocou na coluna Prestes e na insurreição liberal, entre os anos 1918-30. Depois, com a insurreição comunista de 1935, e com as guerrilhas urbanas e rurais dos anos 1960-70. A segunda, com os movimentos armados de posseiros em Uauá, Contestado, Pau de Colher entre 1900-40, e Porecatu, Trombas, Formoso e Pindaré, entre 1940-1960.

Portanto, o problema, que permanece, de não subverter a ordem, não está apenas relacionado ao subproletariado conservador. Está relacionado também com o proletariado, com a pequena-burguesia urbana e rural, e com as classes dominantes. Enquanto as classes subordinadas continuarem enxergando a possibilidade de resolver seus problemas através dos mecanismos estatais existentes, todas apresentarão traços conservadores mais ou menos intensos.

Essa situação se tornou ainda mais complexa porque a expansão capitalista precisa ser acompanhada de concessões democráticas para criar a ilusão de que todos têm direitos e podem exercer a cidadania. Isso ocorreu tanto no período de retirada estratégica da ditadura militar quanto no período de devastação neoliberal, em ambos os casos parecendo que a burguesia tinha interesse em construir, como diz Sonia Fleury, uma ordem política democrática fundada no status igualitário da cidadania. Tudo isso, embora o Brasil jamais tenha convivido com uma degradação econômica, social, ambiental e política tão vasta.

A democracia virtual se tornou ainda mais enganosa com a Constituição de 1988, que prometera universalizar os direitos sociais. O neoliberalismo conseguiu a proeza de convencer a maior parte das classes sociais de que o Estado é intrinsecamente ineficiente e caro, sendo melhor mercantilizar os serviços sociais. Se examinarmos a herança deixada pelos governos neoliberais, desde Collor, com a mercantilização da proteção social, verificaremos o apoio que essa falácia ainda tem nas classes sociais trabalhadoras assalariadas e pequeno-burguesas, o que pode fornecer uma medida do conservadorismo incrustado na sociedade brasileira.

Nessas condições, aquilo que Sonia Fleury chama de obliteração do debate sobre o poder de classe e sua tradução como poder de consumo não é apenas uma amostra do projeto político em curso. Ou seja, não pode ser tomada como uma tentativa de substituir o conflito inerente às desigualdades de classe pelo consenso em relação à ascensão social dada pelo consumo na sociedade de mercado. Afinal, conforme reconhece Ivo Poletto, é correta a afirmação de que há milhões de brasileiros que precisam chegar ao mercado para satisfazer necessidades básicas.

Pode-se até acreditar que o resgate e a promoção da dignidade e da cidadania dos que ainda se encontram na miséria, criada pelas oligarquias e pelo Estado submetido a seus interesses, não pode nem será realizado pela sua inclusão no mercado capitalista. No entanto, seria um engano supor que o reconhecimento disso possa se dar apenas do ponto de vista teórico. As classes subalternas só terão consciência disso no aprendizado da luta de classes no processo de inclusão no mercado capitalista e de luta para superar o capitalismo por meio de outro projeto de sociedade.

Por isso, bastou que tais classes voltassem a entrar em movimento, com as manifestações de junho de 2013 e com algumas greves parciais, para que a maior parte da burguesia e seus representantes políticos e militares retornassem à arena da luta política. Aproveitando os 50 anos do golpe militar do dia da mentira de 1964, retornam brandindo os mesmos fantasmas que amedrontaram setores médios e conservadores da população e fizeram o país mergulhar em duas décadas de obscurantismo e crise sem paralelo, apesar de seu inicial e fugaz “milagre econômico”.

Fonte: 


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