Por Ana Lúcia Trevisan*
A prosa de García Márquez, que incorpora tanto a
tradição ficcional européia como as tradições da oralidade e das lendas do
interior da Colômbia, nos instiga a desvendar um cosmos narrativo em que temas
e personagens se desdobram. Em seu primeiro romance, _La hojarasca_, de 1955, a
cidade imaginária de Macondo surge pela primeira vez congregando uma trama cujo
foco narrativo está pulverizado nas memórias e opiniões de três personagens
durante um funeral. Esse romance, ainda sem tocar os contrastes mais definidores
do estilo do autor, torna-se seminal, uma vez que aponta para um aspecto
recorrente: a relevância do microcosmos espacial como uma dimensão simbólica.
Partindo dessa primeira Macondo, inevitavelmente
chegamos ao romance Cem anos de solidão _(1967)_ _e, antes de qualquer
reflexão, vale a ressalva de que esse texto parece renovar-se ao longo dos anos
com uma vitalidade que despertaria a dúvida quanto à existência de uma fonte da
juventude escondida e não mencionada na casa de Úrsula Buendia. A força narrativa
de García Márquez se esconde e se revela em um binômio indissociável, próprio
da verdadeira literatura quando esta agrega uma boa história a uma forma
diferenciada de narrar. _Cem anos de solidão _alcança esse binômio com a
perfeição expressa no tempo predestinado à saga familiar dos Buendia e à
leitura dos misteriosos pergaminhos intraduzíveis. Esses manuscritos passam de
mãos em mãos ao longo do romance, são textos em busca de quem queira e possa
decifrá-los, entretanto, somente nas últimas páginas do romance o sentido
desses escritos será revelado. Lemos o fim do romance ao mesmo tempo em que
conhecemos o fim de Macondo, lemos com os olhos duplicados na figura do
narratário. Uma vez que somos leitores do texto que Aureliano Babilônia está
decifrando, percebemos que o tempo da nossa leitura poderia também inscrever-se
no tempo mítico e circular que ordenou a vida em Macondo.
Será permitido habitar Macondo pelo tempo
determinado na velocidade da nossa própria leitura e, assim, conviver com
Aurelianos e Josés Arcadios, sofrer com os amores e os ciúmes de Rebeca ou
Amaranta, deleitar-nos com a praticidade estarrecedora da matriarca Úrsula
Buendia e da objetividade visionária do alquimista e patriarca José Arcádio
Buendia. Com assombro observamos a aparição do gelo, do imã ou da fotografia e,
por outro lado, desprovidos de total espanto vemos ascender aos céus, Remédios,
a bela - já convencidos pela lógica da causalidade interna do romance que tal
corpo ofuscante deveria, verdadeiramente, retornar a sua condição celestial.
As referências históricas aos descobrimentos, às
colonizações ou mesmo aos movimentos de independências, que se rearticulam no
interior da cidade de Macondo, juntamente com as peripécias da estirpe dos
Buendia, têm ocupado estudos literários há 40 anos. No entanto, se pensarmos em
uma primeira e sempre irrepetível leitura do romance, vale ressaltar que cada
vez que essa pequena cidade imaginária se constrói e se destrói diante dos
olhares de seus personagens e de seu leitor derradeiro, cada vez que esse
romance escrito e circunscrito na esfera da leitura e da escritura se instaura,
entendemos que estamos diante de um deslumbramento, como leitores nos tornamos
completamente solidários no maravilhoso e traremos na lembrança, por muito tempo,
a imagem da primeira vez que nos foi mostrado o gelo pelo olhar de Aureliano
Buendia.
A narrativa ficcional de García Márquez parece
retornar sempre a mesma questão: o poder da palavra seja ela escrita ou
simplesmente dita. Os falares literários e populares compõem os desdobramentos
da ficção e sugerem uma leitura que caminha em uma espiral de referências. Ora
as cidades tornam-se palavras e podem ser lidas até que se consumam, ora a
narrativa histórica é palavra e pode reinventar criticamente o passado. E,
tantas vezes, o amor faz-se verbo, começando e terminando no desejo de possuir
as palavras, do outro, de nós mesmos.
*[Ana Lúcia
Trevisan é doutora em Letras, professora do Programa de Pós-Graduação da
Universidade Presbiteriana Mackenzie]
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