Por Wladimir Pomar
Jessé
Souza tem razão ao afirmar que luta de classes não é apenas a greve sindical,
ou a revolução sangrenta. Mas ele acrescenta que ela é, antes de tudo, o
exercício silencioso da exploração, “construída e consentida socialmente”,
inclusive abordagens “científicas” que se constroem a partir do senso comum ao
invés de criticá-lo. Ainda segundo ele, nos seus estudos das classes,
“dignidade” é um conceito “procedural” e não substantivo. Ou seja, “dignidade”
não é um valor moral específico, mas um conjunto de características
psicossociais incorporadas.
Na
realidade, luta de classes é um jogo de opostos. Ela é tanto o exercício
silencioso da exploração quanto o exercício resistente, silencioso ou não, a
essa exploração. Nesse jogo contraditório, ocorre a disputa científica,
teoricamente formulada como ideologia e como política, justificadora ou crítica
quanto à ação prática, que inclui uma série considerável de formas de luta, de
um lado e de outro, a exemplo da greve e da repressão, e da revolução e da
contrarrevolução. Portanto, na luta de classes, não se pode enxergar apenas um
dos lados.
Cada
classe social historicamente existente possui, como diz Jessé, sua própria
dignidade, ou seu conjunto de características psicossociais incorporadas. No
entanto, isso não ocorre de forma estanque, em especial no que diz respeito às
classes dominadas e exploradas. Estas vivem sob a pressão do conjunto de
características psicossociais das classes dominantes e exploradoras. Essa
pressão, através da educação, da comunicação social e de outras formas de transmissão
de conhecimentos, tende a fazer com que a exploração e a dominação se tornem
socialmente consentidas pelas classes dominadas e exploradas.
No Brasil,
a lealdade das escravas caseiras a suas amas, mesmo após a libertação legal dos
escravos, fez parte de sua dignidade até muitos anos depois do fim do
escravismo, como pode ser verificado em boa parte da literatura nacional. A
lealdade de camponeses agregados aos latifundiários, que os deixaram produzir
de favor em suas terras, levou muitos deles a se tornarem jagunços e/ou
assassinos. Isto, tanto para a luta contra outros latifundiários quanto para
matarem camponeses fugidos da servidão por dívida. O que talvez perdure ainda
hoje, também estando descrito num sem número de obras literárias. Assalariados
que furam greve, ou funcionam como delatores de seus companheiros, se encontram
em idêntica situação de subjugação à ideologia e à política dominantes.
Por outro
lado, as condições reais de existência, produção e sobrevivência das classes
dominadas lhes impõem valores, características psicossociais, ideologias e
expressões políticas que se chocam com seus correspondentes dominantes. As
classes dominadas aprendem, na luta pela sobrevivência e na reação natural à
exploração, que a solidariedade entre seus membros não é a mesma da
solidariedade das classes dominantes. Aprendem que o individualismo tem muito
menos eficácia do que a união na conquista de qualquer pequena vantagem.
Aprendem que os direitos usufruídos pelas classes dominantes, mesmo consagrados
em lei, são direitos que só se tornam reais para as classes dominadas se forem
reconquistados através de luta. A luta econômica dos garis do Rio de Janeiro é
exemplo recente.
Portanto,
alcançar a consciência de que são uma classe própria, diferente da classe
dominante, tem sido um longo aprendizado para todas as classes dominadas que
passaram pela história da humanidade. Às vezes, em geral, mais precisamente
para cada geração de uma mesma classe. No Brasil, a geração que constituiu a
classe trabalhadora assalariada dos anos 1950 era principalmente constituída
por parcelas oriundas do campo, que não haviam vivido e aprendido com as lutas
operárias dos anos 1930. Algo idêntico ocorreu com a geração que formou a
classe trabalhadora assalariada dos anos 1970, que não viveu a experiência de
luta dos anos 1950 e início dos anos 1960. E está ocorrendo agora com a nova
classe trabalhadora, que está sendo construída a partir do novo crescimento
econômico e das gerações camponesas que se tornaram urbanas.
De
qualquer modo, como frisa Sonia Fleury, para as elites, a categoria social dos
pobres sempre se constituiu em séria ameaça à ordem estabelecida. Vistos pelo
prisma do medo das classes perigosas, os conflitos de classe teriam tomado o
caráter de violência rural e urbana, demandando uma postura repressiva por
parte do Estado para assegurar a ordem e o domínio. Fleury também poderia ter
dito que o Estado surgiu como resultado dos conflitos de classe, desde que as
classes surgiram na história, tanto para proteger os interesses das classes
economicamente dominantes quanto para garantir a sobrevivência das classes
realmente produtoras das riquezas. O que, às vezes, também gera contradições entre
as classes dominantes e o Estado.
No Brasil,
essa situação aparentemente esdrúxula se tornou presente na segunda metade dos
anos 1970. O Estado militarizado, mesmo contando com a participação servil de
teóricos representantes da burguesia, já não conseguia atender aos interesses
globais dessa classe dominante, composta das frações industrial, financeira,
comercial, de serviços e agrária. O papel dado pelo Estado a suas empresas
estatais fora útil durante a preparação das condições para o chamado milagre
econômico, mas as tornaram concorrentes indesejáveis das empresas privadas à
medida que a elevação dos preços do petróleo e a crise da dívida externa se
instalaram no país.
Nessas
condições, como reconhece Amélia Cohn, os movimentos sociais dos anos 1970 e
1980, tanto os movimentos populares quanto o novo sindicalismo, foram capazes
de constituir, junto com outros segmentos e organizações da sociedade, um
fenômeno social e político novo no país, com grande capacidade de mobilização.
No entanto, não são muitos os que se aperceberam de que a estagnação econômica
dos anos 1980 colocou a fração industrial da classe dos trabalhadores na
defensiva. Suas mobilizações sociais entraram em descenso a partir de 1986, ao
mesmo tempo em que aumentou sua mobilização política, decorrente das conquistas
democráticas que levaram a ditadura militar a sair de cena e culminaram na
Constituição de 1988 e nas eleições presidenciais de 1989.
Foi esse
processo que trouxe à luz uma composição de classes mais complexa do que aquela
que servia de parâmetro para os movimentos sociais dos anos 1970 e 1980. A
proclamada classe trabalhadora era, na verdade, pelo menos duas: a classe
trabalhadora assalariada e a classe trabalhadora proprietária de pequenos meios
de produção urbanos e rurais.
O destaque
conquistado pela fração industrial da classe dos trabalhadores assalariados,
representada pelo novo sindicalismo e pelo PT, por um lado, mascarava o fato de
que as demais frações assalariadas, como os empregados no comércio, nos serviços
e na agricultura, também faziam parte da mesma classe. Porém, por outro, criava
confusão com os trabalhadores que também eram proprietários de meios de
produção, como os camponeses e os donos de fabriquetas de quintal e pequenos
comércios e serviços.
As
reivindicações dos trabalhadores proprietários às vezes eram idênticas às dos
trabalhadores assalariados. Porém, muitas vezes eram contrárias a elas. Essa
situação se tornou particularmente esdrúxula nos sindicatos de trabalhadores
rurais, basicamente associações sindicais de pequenos proprietários camponeses,
que passaram a sindicalizar também trabalhadores assalariados agrícolas,
causando confrontos internos de difícil solução.
Além
disso, ficou evidente a existência de uma imensa classe de descalços,
desamparados, desvalidos, excluídos, lumpemproletários, ralé, ou qualquer outra
denominação aparentada, sua maioria sobrevivendo na pobreza e miserabilidade.
Os membros dessa classe se diferenciavam mesmo dos pobres e miseráveis da
classe dos trabalhadores assalariados e dos camponeses proprietários de
minifúndios. Eles haviam chegado, mais de 20 anos após terem migrado dos campos
para as cidades, àquela situação em que se classificavam, como diz Jessé Souza,
analfabetos,inferiores, preguiçosas, menos capazes, menos inteligentes, menos
éticos, e incapazes de serem gente e dignos. Por outro lado, a essa descrença
em si próprios e em seus iguais, sua condição negativa de vida gerava raiva e
espírito destrutivo, contra tudo e contra todos os que pareciam socialmente
acima, mesmo que só aparentemente.
Constituindo
parcela significativa do total da população brasileira, essa classe recebeu o
direito de voto, na onda democratizante dos anos 1980, que estendeu tal direito
aos analfabetos. E se transformou no principal pivô da campanha presidencial de
1989, quando Collor aproveitou suas características negativas, incluindo sua
recusa em votar em alguém quase igual a ela, para jogá-la contra todos e
conquistá-la com sua fantasiosa caça aos marajás.
O mesmo
preconceito prevaleceu nas eleições presidenciais seguintes, só mudando
radicalmente em 2002, quando a própria burguesia se dividiu diante dos
resultados devastadores dos governos neoliberais. Desse modo, qualquer espelho
retrovisor é capaz de mostrar, no período que vai de 1986 a 2012, que a luta de
classes no Brasil se travou, fundamentalmente, nos limites da disputa
político-eleitoral. As mobilizações estritamente sociais haviam ingressado num
vale, ou descenso, profundo e de longa duração.
Fonte:
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