quarta-feira, 12 de março de 2014

50 anos de um comício que ainda fala ao Brasil

Por Saul Leblon

A derrubada violenta de Jango em 1964 foi antecedida, a exemplo do que se fez com Vargas dez anos antes, e da tentativa frustrada contra Lula, 41 depois, de uma campanha midiática de ódio e acusações de corrupção contra o seu governo e a sua pessoa.

As motivações também se assemelhavam.

E não eram aquelas estampadas pelo alarido moralista.

O governo Jango, como o de Vargas  --e o ciclo atual do PT— buscava revestir o desenvolvimento brasileiro  de  travas de soberania  e direitos sociais inaceitáveis pelo dinheiro graúdo de ontem e de hoje.

Jango ensaiava expandir o alicerce varguista, ao qual servira como ministro do Trabalho,  com o impulso a reformas de base dotadas de expressivo apoio popular.

Nos jornais, no entanto, o clima era adverso.

A crispação editorial desenhava um Brasil aos cacos, uma sociedade a caminho do esfarelamento econômico e social.

O jogral do desgoverno, do desabastecimento e da infiltração estrangeira e marxista servia o medo no café da manhã; guarnecia o jantar com a insegurança do dia seguinte.

Pesquisas do Ibope sonegadas então à opinião pública, e assim ocultadas por mais de 40 anos, contradiziam o bombardeio diuturno das expectativas  veiculadas pelos  órgãos de comunicação.

A mídia agia  ostensivamente como parte interessada no assalto ao poder que interrompeu um governo democrático, instaurou uma ditadura, suspendeu as liberdades e garantias individuais, sufocou o debate das reformas estruturais requeridas pelo desenvolvimento.

Para isso denegriu, mentiu, prendeu, matou, torturou e censurou.

Foi dela a iniciativa de convocar o pânico e a mentira e com eles sabotar o debate plural sobre o passo seguinte da história brasileira, cercando-a de interditos ideológicos e moralistas.

Ontem como hoje, seu papel foi decisivo para levar a classe média a incorporar um discernimento preconceituoso e  golpista à sua visão do desenvolvimento brasileiro.

E mesmo assim, só uma parte dela.

Os dados coletados pelo Ibope, em enquetes de opinião realizadas às vésperas do golpe  (e hoje armazenados no Arquivo Edgar Leuenroth, da Unicamp), mostram uma realidade distinta daquela cristalizada na narrativa hegemônica.

O conjunto assume incontornável  atualidade quando cotejado com a ênfase predominante no aparato midiático do Brasil, Argentina ou da Venezuela nos dias que correm.

Pesquisas levadas às ruas entre os dias 20 e 30 de março de 1964, quando a democracia era  sofregamente tangida ao matadouro pelos que bradavam em sua defesa, mostram que:

a) 69% dos entrevistados avaliavam o governo Jango como: ótimo (15%); bom (30%) e regular (24%).

b) Apenas 15% o consideravam ruim ou péssimo, fazendo eco do martelete midiático.

c) quase 50% ( 49,8%) cogitavam votar em Jango, caso ele se candidatasse à reeleição em 1965 (41,8% rejeitavam essa opção).

d) 59% apoiavam as medidas anunciadas pelo Presidente na famosa sexta-feira, 13 de março , quando assinaria decretos que expropriavam terras às margens das rodovias para fins de reforma agrária,  nacionalizaria  refinarias, comprometia-se com a reforma urbana, fiscal e educacional.

As pesquisas sigilosas compõem agora o desconcertante contrapelo das manchetes golpistas que podem ser acessadas em modernos bancos de dados, ou lidas nas edições correntes dos mesmos veículos, escritos e dirigidos pela mesma cepa  que urdiu a fraude informativa de 1964.

Um jornalismo que oculta elementos da equação política e econômica, exacerba adversidades, manipula o debate e interdita as soluções requeridas pelo desenvolvimento  –a exemplo do que fez com a agenda das reformas de base em 1964.

Em editorial  escrito com a tintura do cinismo oportunista, um dos centuriões daquelas jornadas, o diário O Globo, fez recentemente a autocrítica esperta de sua participação no episódio.

Como certos confidentes da ditadura, ora promovidos a historiadores do período, o diário dos Marinhos escusa-se se no acessório para justificar a violência golpista como inevitável diante do quadro extremado: o golpe viria de qualquer jeito, um lado ou de outro, sugere-se.

Se havia extremismo em bolsões à esquerda, a verdade é que a incerteza social e a rejeição ao governo, como se vê pela pesquisa do Ibope, foram exacerbadas deliberadamente para gerar o clima de animosidade insanável e  legitimar  assim a ruptura institucional.

As semelhanças com a engrenagem em movimento avultam aos olhos menos distraídos.

Esse é o ponto a reter.

Ele faz da rememoração do discurso que completa 50 anos nesta 5ª feira,  um mirante  oportuno para enxergar não apenas o passado.

Mas a partir dele arguir interrogações de latejante urgência no presente.

Em que medida a reordenação de um ciclo de desenvolvimento pode ocorrer dentro da democracia quando esta lhe sonega os meios para o debate e o espaço político para construção das maiorias requeridas ao passo seguinte de uma nação?

O Brasil dos anos 60  vivia, como agora, o esgotamento de um ciclo e o difícil parto do seguinte.

As reformas de base – a agrária, a urbana, a tributária, a política, a educacional — visavam destravar potencialidades e recursos de um sistema exaurido.

O impulso industrializante de Vargas, dos anos 30 a meados dos anos 50,  e o do consumo , fomentado por Juscelino, mostravam claros sinais de esgotamento.

Trincas marmorizavam todo tecido social e econômico. Os remendos já não sustentavam o corpo de uma sociedade que reclamava espaço para avançar.

Esgarçamentos eram magnificados  pelos guardiães da estabilidade, a exemplo dos que agora clamam pelo rebaixamento da nota do Brasil junto às agências de risco.

O déficit público latejava entre as urgências do desenvolvimento e as disponibilidades para financiá-lo sem uma reforma tributária corajosa.

O PIB anêmico e a inflação renitente completavam a encruzilhada de um sistema econômico a requerer um aggiornamento estrutural.

O conjunto tinha como arremate a guerra fria, exacerbada na América Latina pela vitória da revolução cubana, que desde 1959 irradiava uma alternativa à luta pelo desenvolvimento regional.

O efeito na vida cotidiana era enervante. Como o seria no Chile, nove anos depois; como o é hoje, em certa medida, na Venezuela de Maduro; ou na Argentina de Cristina.

As reformas progressistas propostas por  Jango estavam longe de caracterizar o alvorecer comunista alardeado diariamente nas manchetes do udenismo midiático.

O que se buscava era  superar entraves --e privilégios--  de uma máquina econômica entrevada em suas próprias contradições.

Jango pretendia associar a isso um salto de cidadania e justiça social, ampliando o acesso à educação e aos direitos no campo e nas cidades para dar um novo estirão ao mercado interno.

Diante do salto ensaiado,  convocada a democracia a discutir as grandes avenidas do futuro brasileiro, os centuriões da legalidade optaram pelo golpe.

Deram ao escrutínio popular um atestado de incapacidade para formar os grandes  consensos  indispensáveis à estabilidade e duração de um ciclo de expansão produtiva e florescimento democrático.

Os ecos persistentes desse período encerram  uma lição negligenciada por aqueles que ainda encaram o binômio 'mídia e regulação' como um ruído contornável com a barganha de  indulgências junto a um aparato que em última instância deseja-lhes a mesma sorte de Jango.

A verdade é que nem mesmo um programa moderado de reformas e oxigenação social  como o da coalizão centrista liderada pelo  PT é tolerável.

É imperativo iluminar a seta do tempo que não se quebrou  na atualidade das mudanças estruturais reclamadas pelo país.

Em 13 de março de 1964, Jango pronunciaria  o discurso memorável, que daria a essa agenda o lugar que ela ainda cobra na história brasileira. E que a narrativa conservadora insiste em lhe sonegar.

Leia a íntegra do comício pronunciado pelo Presidente João Goulart, na Central do Brasil, no dia 13 de março de 1964:


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