Chego ao fim do ano e constato que estou vivo. Estar vivo é milagre constante. Por muito pouco a vida se esvai: um coágulo de sangue no cérebro, um tropeção, um vírus, um tiro, o acidente de trânsito, um acaso, o esgarçamento ético, a desprovisão moral.
A cada manhã se repete o renascer. Agora sei por que o bebê faz manha à hora em que o sono começa a vencer-lhe a resistência. Teme a morte, a segregação do aconchego, o retorno às cavernas uterinas. O sono apaga-lhe os sentidos, a consciência, o (con)tato com mãos e olhares afetuosos.
Crescer é dormir sem medo. Confiante de que se vai acordar no dia seguinte. Agora, confio que acordarei em 2015. Espero que não apenas do sono pós-Réveillon. Também dessa letargia que me acossa, desse propósito de inconsistência que me assalta, dessa lúgubre angústia de viajeiro que, além de perder o mapa, perdeu-se no mapa.
Adeus, 2014. Seus algarismos somaram sete. Sete são as maravilhas do mundo e os sacramentos católicos, as notas musicais e os dias da semana, as cores e os dons do Espírito Santo. Sete é o número do infinito em tradições antigas, como infinita foi minha espera. Vi-me soterrado sob tanta indignação. A nação entrou em desértica perplexidade, esse ciclo infernal que faz atuais os círculos inferiores de Dante e o mundo diabólico do Doutor Fausto.
Neste ano que finda, comunguei a dor, essa dor inconsútil que dilacera silenciosamente, um por um, os fios que, em nossa subjetividade, tecem a certeza de que o sonho é o prenúncio inconsciente de que todo real é vulnerável.
Contudo, não sucumbi. Feito bambu, envergo mas não quebro. De minhas ranhuras brota delicado som de flauta. Não sou dado ao absinto e sei que a vida é uma aposta. Todas as minhas fichas estão colocadas no tabuleiro dos deserdados. Jogo ao lado dos perdedores. É apenas isto que me interessa: ao faminto, o pão e a paz.
Bem sei que teremos um ano novo politicamente turbulento, economicamente difícil. Prefiro assim à ordem canhestra das ditaduras e ao genocídio da guerra que supõe impor democracia por força das armas. Só não sei quando o meu povo se erguerá da desolação, os jovens deixarão de ser meros espectadores e, de novo, ruas e praças serão ocupadas, desalojando a política de seus palácios.
Tenhamos todos, em 2015, acesso à vida, distribuída à farta como pão quente pela manhã, sem jamais temer as intermitências da morte.
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