Por Paulo Passarinho
Recentemente, setores que apoiam o atual governo divulgaram um manifesto onde, com toda razão, se posicionam contrariados com algumas das iniciativas da presidente reeleita. Particularmente, registraram seu descontentamento com a já confirmada nomeação de Joaquim Levy, como futuro ministro da Fazenda, e a possível ida de Kátia Abreu para o Ministério da Agricultura. Para os signatários deste manifesto, durante a última campanha presidencial teria ficado claro que eram dois os projetos em disputa e essas escolhas de Dilma representariam uma vitória, na prática, do projeto que foi derrotado.
Esta ideia da existência de dois projetos em disputa é totalmente questionável e realimenta ilusões sobre o verdadeiro caráter do modelo econômico em curso no Brasil, desde os anos 1990. Mais grave: fortalece a mitificação, promovida pelo lulismo, de um suposto neodesenvolvimentismo, com base, ao menos, em dois graves equívocos.
O primeiro equívoco relaciona-se ao fato – muito palpável – de os resultados apresentados pelos governos pós-2002 terem sido muito diferentes do período em que FHC esteve na presidência da República. A ampliação dos programas de transferência de renda, a ampliação da oferta de empregos, a recuperação do poder de compra do salário mínimo e a expansão do crédito são exemplos de efeitos obtidos ao longo dos anos em que o PT se encontra à frente do governo federal, e que se distinguem como diferenças importantes em relação à era tucana. Contudo, o fato de os efeitos terem sido diferenciados entre esses dois períodos de governo não significa, necessariamente, que tenhamos modelos econômicos ou projetos diferenciados.
O segundo equívoco, mais grave, é de natureza conceitual e procura amparar essa avaliação – sobre alguns efeitos diferenciados entre esses dois períodos de governo – como uma clara evidência da constituição de um novo modelo econômico em curso no país. Esse equívoco vincula-se às visões que defendem que, especialmente a partir do final do primeiro mandato de Lula, assumimos um projeto neodesenvolvimentista, com taxas médias de crescimento da economia superiores ao período de FHC, melhor distribuição de renda e uma política externa “independente”.
O fato de o Brasil ter experimentado uma taxa média de crescimento anual durante os dois mandatos de Lula (4%) superior aos oito anos de governo FHC (2,3%) não é, evidentemente, condição suficiente para a constatação de um novo projeto econômico em curso, mesmo se levarmos em conta uma suposta melhor distribuição de renda no país. O próprio desempenho da economia nesses primeiros quatro anos do governo Dilma mostra, muito bem, que até mesmo sob a ótica do “crescimentismo” vamos muito mal.
No livro Desenvolvimento às Avessas – Verdade, má fé e ilusão no atual modelo brasileiro de desenvolvimento, Reinaldo Gonçalves, professor titular de Economia Internacional da UFRJ, resgata a historiografia econômica e destaca que as raízes do pensamento nacional-desenvolvimentista estão nas ideologias e políticas de desenvolvimento econômico da Grã-Bretanha, nos séculos XVI e XVII; da França, no século XVII; dos Estados Unidos, no final do século XVIII e na primeira metade do século XIX; da Alemanha, no século XIX; e do Japão, do final do século XIX e início do século XX.
Este desenvolvimentismo – genuíno ou original – objetivava a formação de uma sólida base produtiva de capital nacional, baseada no trinômio industrialização substitutiva de importações/intervencionismo estatal/nacionalismo.
Essas experiências desenvolvimentistas se diferem, por sua vez, do chamado nacional-desenvolvimentismo brasileiro, ou latino-americano, baseado nas formulações da escola cepalina. Reinaldo Gonçalves qualifica a nossa experiência desenvolvimentista, entre os anos de 1930 e 1979, como uma “cópia infiel” do nacional-desenvolvimentismo, ainda que ela tenha sido capaz de promover significativas mudanças estruturais, particularmente com a formação de uma economia industrial moderna. Contudo, tal processo de industrialização foi viabilizado com uma forte presença do capital estrangeiro, traço fundamental para o entendimento das limitações desse modelo e sua incapacidade de nos permitir um caminho sustentado para a superação do subdesenvolvimento e da dependência econômica que nos caracteriza.
Lembro essas considerações, pois as mudanças constitucionais, as privatizações, os fundamentos macroeconômicos e as reformas institucionais e administrativas introduzidas no Brasil ao longo dos anos 1990 – nos governos de Collor, Itamar e FHC – foram mantidos e aprofundados nos últimos doze anos. Mudanças que ampliam a desnacionalização do parque produtivo brasileiro, aprofundam nossa regressão industrial, além de submeter e fragilizar o Estado brasileiro às pressões do chamado mercado. Características, portanto, absolutamente distintas de qualquer coisa próxima ao que podemos entender como desenvolvimentismo, original ou plagiado.
Isso não significa que não tenhamos tido mudanças produzidas por necessidades conjunturais, como foi o caso da utilização dos bancos públicos, para a garantia da manutenção do mercado de crédito, na crise que se abriu a partir de 2008. Porém, esse tipo de heterodoxia – sob a ótica liberal – vem sendo aplicada até mesmo na Meca do pensamento ortodoxo, os Estados Unidos, com as suas fabulosas injeções monetárias anticíclicas, diretas aos bancos e instituições financeiras privadas.
A apologia, portanto, da existência de um suposto neodesenvolvimentismo no Brasil atual é apenas mais uma construção ideológica que confunde, deseduca e desarma os setores progressistas da sociedade, contra a reforçada hegemonia dos bancos e multinacionais, os maiores defensores e beneficiários deste modelo.
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