ESCRITO POR VALÉRIA NADER E GABRIEL BRITO
A Comissão Nacional da Verdade chegou ao fim e nas próximas semanas o país começará a digerir as revelações e recomendações de seu vasto relatório final. Foram cerca de dois anos de trabalho naquele que foi o primeiro passo dado pelo Estado brasileiro para acertar as contas com o passado ditatorial e preencher lacunas da história oficial do país. Para analisar o trabalho da Comissão e seus resultados, o Correio entrevistou a historiadora Angela Mendes de Almeida.
“A Comissão optou por retomar, de forma didática e em certo sentido visando, sobretudo, a área jurídica, a legislação nacional e a vasta legislação internacional (altaneiramente ignorada em geral pelo Judiciário brasileiro), as figuras penais de violações dos direitos humanos, e ilustrá-las com exemplos. Isso incorpora a certeza de que a impunidade dos crimes da ditadura civil-militar são alimentadores da impunidade dos crimes contra a humanidade que continuam acontecendo, hoje, aos olhos de todos”, afirmou.
Reforça-se, portanto, a ideia de que a barbárie social de hoje é filha direta do regime de exceção que institucionalizou diversas formas de abuso e violação de direitos, além da escancarada violência policial até hoje legitimada em larga escala. “Uma coisa é certa: nada acontecerá se não houver pressão popular, pressão dos movimentos sociais, que devem ter presente que a aplicação destas recomendações seria a supressão de vários procedimentos criminosos que hoje estão naturalizados e incorporados”.
Além de lembrar que o STF ainda terá de encarar novos questionamentos sobre a validade da lei de anistia de 1979, convalidada pelo tribunal, e criticar as declarações de Dilma (novamente insistindo na tese de “acordo nacional”), Angela destaca que todas as revelações da Comissão, e outras que o futuro trará, exigirão grande vontade política para desaguarem em punições aos criminosos. “Os processos jurídicos têm de ser objeto de pressões através de manifestações populares e outros meios de batalhar contra a impunidade. Não vai ser coisa de um dia, uma hora, mas uma luta de dia a dia, mês a mês, uma espécie de ‘guerrilha’ contra a impunidade”.
A entrevista completa de Angela Mendes de Almeida pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Como você avalia a amplitude e abrangência da Comissão da Verdade, em seus pouco mais de dois anos de trabalho?
Angela Mendes de Almeida: Foram dois anos e sete meses de trabalho, que no início foram bastante conturbados. E isso aconteceu pela forma com que a presidente Dilma fez votar a lei que criou a comissão, descartando todas as sugestões dos militantes e familiares dos mortos e desaparecidos, bem como cedendo às pressões dos militares e da direita. Assim, o número reduzido de conselheiros, sete, diminuiu ainda mais, a seis, em virtude da não substituição de Gilson Dipp. Doente uma parte do tempo, terminou por pedir demissão.
As dubiedades presentes na Lei 12.847/2013, que criou a Comissão, também influíram, no período inicial, dando lugar a indecisões e até querelas de personalidade que terminaram, infelizmente, a causar o pedido de demissão do conselheiro Cláudio Fonteles.
Mas depois o trabalho engatou, sobretudo pela criação de comissões da verdade estaduais, municipais, locais e do procedimento das audiências públicas (foram cerca de 150 na Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, em São Paulo), e as informações foram jorrando. Com um pessoal qualificado e numeroso foi possível o cruzamento de dados que são, talvez, um dos pontos fortes deste relatório.
A expressão “graves violações de direitos humanos”, uma generalização com que Lula tentou aplacar a ira dos militares no projeto inicial, substituindo a referência direta à ditadura civil-militar, terminou por ser um instrumento para a Comissão analisar amplamente todas as violações que estão entranhadas nos costumes da vida cotidiana brasileira.
Correio da Cidadania: Qual a sua opinião inicial a respeito do relatório final apresentado em 9 de dezembro de 2014?
Angela Mendes de Almeida: Trata-se de uma opinião verdadeiramente inicial, dado o volume do relatório. A Comissão optou por retomar, de forma didática e em certo sentido visando, sobretudo, a área jurídica, a legislação nacional e a vasta legislação internacional (altaneiramente ignorada em geral pelo Judiciário brasileiro), as figuras penais de violações dos direitos humanos, e ilustrá-las com exemplos. Analisaram todos os casos concretos de que já se tem notícia para o período em pauta? Seguramente que não.
Retomando a legislação internacional sobre Direitos Humanos, condensada em várias declarações e novas conceituações formadas a partir da reflexão sobre os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, particularmente a ação do nazismo, o relatório conseguiu superar as discussões jurídicas que se estavam travando no Brasil em relação à anistia ao crime de tortura, sobre como caracterizá-la, como “crime político” ou “crime comum”. Não sendo nem uma coisa nem outra, retoma-se a legislação internacional para defini-lo através de uma figura penal não existente nos códigos brasileiros, de “crime contra a humanidade”.
Seria redundante afirmar que, quanto aos desaparecidos, a Comissão praticamente não conseguiu quase nada, face ao silêncio ensurdecedor das Forças Armadas sobre a questão. Mas mesmo sobre mortos e sobre a sistematização dos dados sobre desaparecidos, a Comissão Estadual da Verdade de São Paulo fez um trabalho mais consistente, que constitui o essencial do Volume III do relatório. A questão das violações em geral e das mortes, tanto entre os camponeses como entre os indígenas, violados porque estavam lá onde os militantes precisavam passar, teve uma primeira abordagem que precisa ser seguida por mais investigações e esclarecimentos.
Ficou faltando a verdade sobre as “graves violações de direitos humanos”, ou seja, os “crimes contra a humanidade”, que continuam acontecendo desde então até hoje com as populações pobres, em sua maioria negras, das periferias e favelas: prisões ilegais e arbitrárias, sequestros, torturas, execuções sumárias e ocultação de cadáveres. Elas estão presentes nas recomendações que abordam toda uma série de temas e reivindicações dos defensores de direitos humanos e dos movimentos sociais: mecanismos de prevenção da tortura, fortalecimento das defensorias públicas, independência dos Institutos Médico-Legais da estrutura de segurança pública, reforma do sistema prisional, fim das revistas vexatórias, desmilitarização das polícias militares estaduais, fim da figura de “Resistência Seguida de Morte” (ou “auto de resistência”), introdução da “audiência de custódia” para os presos em flagrante, entre outros.
Isso incorpora a certeza de que a impunidade dos crimes da ditadura civil-militar são alimentadores da impunidade dos crimes contra a humanidade que continuam acontecendo, hoje, aos olhos de todos.
Correio da Cidadania: Quanto aos encaminhamentos recomendados no relatório final, acredita que o governo, em meio aos atuais escândalos políticos, seus acordos pós-eleitorais, um congresso mais conservador, tendo em vista ainda as declarações já emitidas pela presidente da República, terá o compromisso de levá-los adiante?
Angela Mendes de Almeida: É bem difícil responder a esta questão, mas uma coisa é certa: nada acontecerá se não houver pressão popular, pressão dos movimentos sociais, que devem ter presente que a aplicação destas recomendações seria a supressão de vários procedimentos criminosos que hoje estão naturalizados e incorporados à prática policial, não causando nenhum escândalo.
Sobre as declarações da presidente Dilma, a letra do texto é desagradável, eu diria lamentável mesmo. Porém, é contraditório o contraste que emana entre a emoção do coração, no choro prolongado e contido, que tanta repercussão teve, até internacional, e as palavras ditas: “respeito aos pactos”, “conciliação”, “não ao revanchismo”...
Ora, Dilma sabe que os torturados e os familiares continuam sofrendo hoje; foi este, aliás, o motivo de seu choro. Por que sofrem? Sofrem justamente com a impunidade. Impunidade essa que é o fator mais importante para que ainda hoje continuem havendo, à luz do dia, “graves violações de direitos humanos”, isto é, “crimes contra a humanidade”.
O uso da palavra “revanchismo” pela presidente Dilma, palavra criada nos ambientes da direita e dos militares, também é incongruente. Revanche se dá entre dois contendores colocados no mesmo nível: por exemplo, em um jogo de xadrez, uma partida de futebol. Dilma sabe, e sofreu em sua pele, que, de um lado, estavam o Estado e as Forças Armadas e, de outro, civis, membros de orgranizações de esquerda, armada ou desarmada, pessoas comuns atingidas pela brutalidade do aparelho repressor.
Correio da Cidadania: Quais desdobramentos vislumbra para este processo, em termos de punição aos agentes da repressão pelos diversos crimes perpetrados? E quanto à eventual revisão/revogação da Lei de Anistia pelo STF, acredita na possibilidade?
Angela Mendes de Almeida: Penso que, de início, o Ministério Público Federal acelerará, através do grupo de procuradores ligados ao tema de Justiça de Transição, a apresentação de queixas-crime contra torturadores em diversos casos. Nessa atividade, o MPF, em certa medida, “dialoga” com juízes, já que nos processos já em andamento, às vezes, os juízes acatam a tese da jurisprudência internacional de “crimes contra a humanidade”, e às vezes rejeitam o início do processo argumentando com a Lei da Anistia e a prescrição. Vamos ver com que sensibilidade o meio jurídico apreciará o Relatório.
Um outro terreno no qual estas questões vão ser discutidas, mais dia menos dia, é o STF, quando tiver que analisar a própria Lei de Anistia, a autoanistia de 1979. Há um recurso da OAB sobre a decisão tomada em 2010 e ainda um outro projeto apresentado pelo PSOL no ano passado.
O que estará em questão é a prevalência da ideia de que teria havido, em 1979, um “pacto” entre os militares e a sociedade civil, ou a compreensão de que sequestros, torturas, execuções sumárias e ocultação de cadáveres são crimes contra a humanidade, portanto, impossíveis de serem prescritos ou anistiados.
Esses processos jurídicos têm de ser objeto de pressões através de manifestações populares e outros meios de batalhar contra a impunidade. Não vai ser coisa de um dia, uma hora, mas uma luta de dia a dia, mês a mês, uma espécie de “guerrilha” contra a impunidade.
Correio da Cidadania: O que pensa da postura e colaboração das forças armadas no período dos trabalhos da Comissão da Verdade?
Angela Mendes de Almeida: Meu ímpeto inicial seria não responder, pois viriam, em seguida, palavras impróprias. Mas, enfim, o silêncio das Forças Armadas, até agora, e sua má vontade em aceder aos pedidos de informação da Comissão Nacional da Verdade fazem parte de uma esquizofrenia, compartilhada com essa parte da população, bem vestida, que hoje pede uma intervenção militar para “salvar o país”.
Os militares não podem dizer que estas coisas não aconteceram, ou que foram excessos ou exceções, daí porque a importância de a Comissão ter estabelecido a cadeia de comando que ia dos presidentes ditatoriais ao executor da violação. Não podem dizer – ao menos aqueles que estão em cargos institucionais – que foi bem feito, livrou o país do comunismo, porque as ações relatadas são crimes inclusive diante da legislação vigente na própria ditadura, daí o seu caráter secreto e clandestino. Não podem argumentar que “do outro lado” houve crimes, já julgados e punidos de acordo com a lei ditatorial.
Em todo caso, a ação de um civil, ou de cem civis, não justifica a violação de direitos humanos por parte sequer de apenas um agente do Estado. Mesmo porque violação de direitos humanos é necessariamente uma ação do Estado, por meio de seus agentes. E é essa didática que o Relatório explicita.
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