Escrito por Valéria Nader e Gabriel Brito
O ano de 2014 deixa marcas indeléveis na história do Brasil. 50 anos do Golpe Militar, Copa do Mundo e um dos processos eleitorais mais acirrados dos últimos anos. Já quase no apagar das luzes do ano, a explosão de escândalos em uma das empresas símbolo do país, com revelações diuturnas de uma histórica promiscuidade público-privada.
Nosso entrevistado especial nesse final de ano é o filósofo franco-brasileiro Michel Löwy, que esteve no Brasil para lançar mais um livro e fez um giro por diversas instâncias do debate político.
“Não vejo nenhuma razão pra dizer que tudo vai bem. Por outro lado, temos o otimismo da vontade. Precisamos lutar. Antes que seja tarde. Na França, temos uma situação de crise. O governo social-liberal é um fracasso total. Não tomou praticamente nenhuma medida de esquerda, salvo aquela a favor do casamento gay. E o problema é que a raiva das pessoas é capitalizada pela extrema-direita, fascista, homofóbica, xenofóbica etc. Isso é muito preocupante. No Brasil, existe essa postura, mas é limitada. Aqui, nas manifestações de extrema-direita, vão 2.500 pessoas. Na França, contra o casamento gay, saíram um milhão de pessoas. Tem diferença”, afirmou.
Com um olhar mais distanciado da rotina nacional, e a partir de visão global do quadro das lutas políticas e sociais, o filósofo expressa otimismo quanto ao processo brasileiro e latino-americano. Segundo ele, nosso continente continua sendo a principal referência de reorganização da luta e do imaginário da esquerda. “Obviamente, não há nada a esperar da socialdemocracia europeia. O social-liberalismo latino-americano é bem mais avançado socialmente do que o seu equivalente europeu, que é completamente alinhado com as receitas neoliberais. Por enquanto, temos apenas duas experiências boas na Europa (Syriza e Podemos). Mas a extrema-direita é que está de vento em popa (...) Na América Latina, na maior parte dos países, as comunidades indígenas são atores fundamentais das lutas sociais, da resistência contra o neoliberalismo, da defesa do meio ambiente”.
Em sua conversa com o Correio, Lowy perpassou também por seus estudos mais recentes, associados ao ideário marxista, e aqui não sobra espaço para ingenuidade: o filósofo é inclemente com o capitalismo, “uma espécie de fatalidade, um destino imposto de uma maneira coercitiva sobre a vida dos indivíduos. O que acaba desaparecendo é a liberdade. Como dizia Weber, ‘o capitalismo é uma escravidão sem mestre’. Porque é impessoal, os indivíduos são os escravos do sistema. E o que temos hoje em dia é um mundo em crise. Os indivíduos são jogados de um lado para outro pelo sistema”.
Mas assim como, para Marx, a luta de classes era a esperança de escape da “jaula de aço” capitalista teorizada por Weber, o ecossocialismo ocupa posição de destaque nos estudos de Lowy, como a porta de saída da opressão capitalista. Uma causa poderosa do século 21, capaz de fagulha similar à que vimos em junho de 2013, quando o Movimento pelo Passe Livre acendeu o pavio de manifestações históricas.
“O importante, pra nós, ecossocialistas, é fazer o trabalho de conscientizar as pessoas, ajudando-as a entender que há uma relação direta entre destruição da Mata Atlântica, o desmatamento da Amazônia e a crise da água. Isso vai acontecer no Brasil, nos países da América Latina, na Europa, no mundo inteiro. Porém, é uma corrida contra o tempo”.
A entrevista completa com o filósofo Michel Löwy pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Você veio ao Brasil nesse ano lançar o livro ‘A Jaula de Aço: Max Weber e o marxismo weberiano’, o qual analisa possíveis analogias entre Marx e Weber. O que poderia falar da temática do livro e de sua importância para a compreensão do atual mundo em que vivemos?
Michel Löwy: O que faço no livro é uma comparação do diagnóstico que Weber e Marx têm sobre o capitalismo, e o que eles têm em comum. Inclusive, Weber reconhece que uma parte do que disse sobre o capitalismo já está em Marx. E há aspectos que são específicos em Weber. Depois, trato de dizer qual é a grande diferença entre eles, mas, num primeiro momento, procuro comparar.
Uma coisa interessante em Weber é que ele tem uma atitude ambivalente. Ele considera o capitalismo o sistema mais racional, mais unificado, mais moderno, muito melhor do que os outros. Por um lado, ele quer que a Alemanha se torne uma potência imperial industrial capitalista etc., mas, por outro lado, enquanto homem de cultura e intelectual, desconfia do capitalismo. Ele tem uma espécie de contradição. Que não é só dele, mas também de outros personagens dessa época.
Mas o que me interessa, naturalmente, é a crítica. É o que procuro colocar no livro. Em particular, me interessa a imagem e a alegoria que ele usa, de que o capitalismo funciona como uma ‘jaula de aço’. A ideia é o capitalismo como um sistema total, que determina a vida dos indivíduos através de um sistema de forças impessoais que ninguém controla. Isso faz alguns irem à falência, outros prosperarem, uns perdem o emprego, outros vão pra miséria, perdem sua casa... É o que estamos vendo hoje, e ninguém controla.
O capitalismo é isso: uma espécie de fatalidade, um destino imposto de uma maneira coercitiva sobre a vida dos indivíduos. O que acaba desaparecendo é a liberdade. Ele tem uma passagem interessante, num artigo de 1906, em que diz ser “ridículo acreditar que há alguma afinidade entre o capitalismo, por um lado, e a democracia ou a liberdade, por outro”. Pelo contrário, a pergunta é, se sob a dominação do capitalismo, vai sobrar alguma coisa de democracia. Um ponto de vista curioso.
Acho interessante tal alegoria. E não é a respeito da burocracia. Porque, nos Estados Unidos, há uma leitura de Weber segundo a qual ele fala da jaula de aço da burocracia, coisa que realmente aparece em alguns textos seus. Mas, em seus textos mais importantes, é do capitalismo que ele fala. Ele tem uma outra expressão: “o capitalismo é uma escravidão sem mestre”. Porque é impessoal, os indivíduos são os escravos do sistema.
Portanto, é uma crítica bastante aguda e tremendamente atual. O que temos hoje em dia é um mundo em crise. Os indivíduos são jogados de um lado para outro pelo sistema, que de um dia para outro faz com que milhões percam os seus empregos e outros milhões sejam expulsos de suas casas. Enfim, é uma loteria que funciona com as regras do capital, da acumulação de capital, da competição, da oferta e da procura. É isso, um sistema total, diz Weber. Podemos dizer totalitário, de certa maneira.
Acho interessante esse pensamento. É uma crítica do capitalismo que em alguns aspectos é próxima de Marx, mas é diferente. Marx insiste em outros temas. Penso que os diagnósticos deles sobre o capitalismo são próximos e, se não idênticos, compatíveis. O que é incompatível entre os dois, e consta no livro, é que o Weber era um fatalista resignado.
Nietsche dizia que o herói da época moderna é aquele que aceita o seu destino. Eis o heroísmo moderno. E o Weber tem um pouco disso, de o capitalismo ser uma fatalidade, no duplo sentido, de algo do qual não se pode escapar e, ao mesmo tempo, algo ruim. Portanto, não há escapatória da jaula de ferro. Estamos encerrados.
Para Marx, não. Marx acha que existe um martelo, que é a luta de classe, com o qual se podem quebrar as barras da jaula de aço capitalista. É a revolução. É aí que eles se separam.
Correio da Cidadania: Nesse contexto, e de modo geral, o que é o marxismo hoje no mundo e qual apropriação possível que dele podem fazer movimentos e ou partidos que buscam um novo modelo de sociedade?
Michel Löwy: Penso que o marxismo é o instrumento e a ferramenta indispensável, não só para entender o mundo, mas transformá-lo. Sem o marxismo, não entendemos o que está acontecendo e tampouco temos elementos de estratégia de luta, e organização, para transformar. Práxis e teoria, as duas coisas, estão ligadas ao marxismo. Ao mesmo tempo, o marxismo não pode ser a repetição simples daquilo que disse Marx ou Lênin ou Trotsky ou Rosa Luxemburgo... Enfim, isso tudo é fundamental, essencial, mas não suficiente, porque o mundo se transformou. Problemas novos apareceram.
Aqui na América Latina, por exemplo, na maior parte dos países, as comunidades indígenas são atores fundamentais das lutas sociais, da resistência contra o neoliberalismo, da defesa do meio ambiente. Isso não está previsto em nenhum dos clássicos do marxismo. Na época, eles pensavam nos operários... Mas índios como atores de uma luta revolucionária não está previsto. Teologia da libertação também não está prevista.
Assim, o marxismo precisa se desenvolver e estar disposto a aprender com os movimentos sociais, com as lutas e fenômenos novos. Pra mim, a novidade ruim, mas importante, e que o marxismo precisa integrar, é a questão ambiental. Porque o capitalismo está levando a humanidade não para o brejo, pois seria simpático, mas para um abismo. Um abismo que se chama aquecimento global, mudança climática, com consequências inimagináveis, sem precedentes nos últimos milhões de anos. Isso resulta, inevitavelmente, da lógica do capitalismo de expansão ilimitada, produtivismo, consumismo e, portanto, destruição e desequilíbrio ecológico.
Portanto, eu acho que o marxismo do século 21 tem de ser um marxismo ecológico.
Correio da Cidadania: Aqui entram seus estudos sobre ecossocialismo.
Michel Löwy: Sim. Mas partindo do marxismo. Partindo da crítica da economia política, do projeto socialista. Tudo isso é fundamental. Mas tem que ser radicalizado, aprofundado e enriquecido com questões novas, em particular, a questão ambiental.
Correio da Cidadania: Antes de aprofundar um pouco essas novas ideias, vemos que seu livro também trabalha com a noção de que o capitalismo teria conseguido, mais do que em qualquer época, introjetar a ideia de aceitação de um destino inexorável às pessoas, como também sugere a citação de Nietsche. Isso porque as próprias relações humanas e sociais seriam menos autênticas, mais automatizadas. É possível concluir que hoje em dia está ainda mais difícil dialogar e mobilizar pessoas, especialmente a partir de vieses marxistas?
Michel Löwy: Eu não diria isso. Cada época tem suas formas de luta, conscientização, resistência cultural e política. As de hoje não são as mesmas do começo do século. Mas eu não diria que no mundo de hoje tudo é conformismo e aceitação. Eles existem em grande escala, evidentemente, mas existe também a resistência. As resistências estão presentes em formas diversas.
Eu mencionei as lutas indígenas, mas não é só. Acho que a América Latina é um bom exemplo do tipo de resistência que está se desenvolvendo. Temos assistido nos últimos anos a uma quantidade extraordinária de lutas, de semi-insurreições na Bolívia, Argentina, Venezuela etc., de mudanças de governo. A esquerda chegou ao governo na maioria dos países da América Latina, esquerdas de diversos tipos, umas mais diluídas, outras mais consistentes.
Enfim, há uma vontade de mudança. E quando menos se espera, estoura uma contestação que pode ser confusa, mas tem elementos radicais, como aconteceu em junho do ano passado, quando o Movimento Passe Livre (MPL) dava o tom dos acontecimentos. Eu não sou nem otimista, nem pessimista. Creio que devemos seguir como o Gramsci dizia, ou seja, “pessimismo da razão e otimismo da vontade”. Fazer a análise de que a situação é grave, de que o poder do capitalismo é enorme, dos perigos e catástrofes que estão se aproximando rapidamente e também são dramáticos.
Não há nada, nenhuma razão, pra dizer que tudo vai bem. Por outro lado, temos o otimismo da vontade. Precisamos lutar. Existe uma possibilidade de luta. Existem movimentos de luta, existem algumas vitórias da esquerda. Portanto, temos de participar dessa tentativa de resistir. Antes que seja tarde demais.
Correio da Cidadania: Nesse sentido, o que é, pra você, a esquerda hoje, no Brasil e na América Latina?
Michel Löwy: Esquerda, em princípio, são partidos e movimentos que se identificam com os interesses das classes subalternas. É o sentido geral. Mas essa esquerda é um leque muito vasto aqui na América Latina, que vai da centro-esquerda – que também pode ser designada como social-liberalismo – até uma esquerda mais radical, anti-neoliberal, anti-oligárquica, anti-imperialista.
Por exemplo, peguemos o caso dos governos de esquerda. Eu acho que a vitória de tais governos foi um avanço, mas muito desigual. Em vários países, como Brasil, Chile, Uruguai, Paraguai (que não durou muito), tivemos experiências de tipo social-liberal. O que é o social-liberalismo? É um governo de esquerda com compromisso de centro-esquerda, que aceita o quadro do capitalismo neoliberal, mas procura introduzir algumas medidas sociais.
O espírito do social-liberalismo – e acho que os governos do PT no Brasil o representam muito bem – é o seguinte: “vamos fazer tudo o que pudermos pelos pobres com a condição de não mexer nos privilégios dos ricos”. E a fórmula matemática do social-liberalismo é, por exemplo, o orçamento da agricultura no Brasil: 90% para o agronegócio e 10% para a agricultura familiar. Claro, esses 10% fazem uma diferença. É uma ajuda importante, mas há uma desproporção enorme.
Essa é a fórmula do social-liberalismo, com variantes. O Uruguai tem o Mujica, um cara simpático. Cada país tem uma forma diferente, mas o funcionamento fundamental é esse. Depois, temos os outros modelos, chamados bolivarianos. Venezuela, Bolívia e Equador tentaram romper com o neoliberalismo. Houve enfrentamento duro com a oligarquia, que tentou armar golpe militar, mas não conseguiu, nos três países. E houve enfrentamento com o imperialismo norte-americano.
Configura-se nesses países, portanto, outro tipo de política. Houve mobilização social, medidas relativamente avançadas etc. Mas nada rompeu com o capitalismo. Não dá pra falar em socialismo. Mas pelo menos tais governos colocam como horizonte histórico de sua atividade o socialismo do século 21. É importante. Mesmo que esteja muito longe, o fato de se ter tal objetivo é um fato político importante na formação dos militantes, na maneira de orientar sua estratégia.
No Brasil e nos outros países, isso não está colocado, de jeito nenhum. Os governos do Lula e da Dilma jamais disseram que vivemos uma etapa em direção ao socialismo. Isso eles diziam nos anos 90. Desde 2002, o assunto saiu da pauta. O mesmo critério vale para os partidos, os movimentos, os sindicatos... Existe toda uma diversidade.
Esse é o panorama da esquerda que enxergo nessa parte do mundo.
Correio da Cidadania: Pensando agora no Brasil, como você, que fica muito tempo fora do país, o enxerga? E como viu a vitória de Dilma neste pleito, com a margem de votos mais estreita dos últimos tempos, e o que espera desse quarto mandato petista no Planalto, ao olhar para a nova configuração do Congresso e para a atual conjuntura econômica nacional e internacional?
Michel Löwy: Eu não escondo as minhas opiniões. No primeiro turno, apoiei a campanha da Luciana Genro, penso que ela fez uma ótima campanha e teve um resultado importante. Apoiei-a também por achar que a Dilma não iria promover as mudanças necessárias no Brasil.
No segundo turno, resolvi apoiar a Dilma, criticamente. Porque achava que a Dilma tinha feito demasiadas concessões ao capital, aos bancos e ao agronegócio, mas o Aécio não ia fazer concessões, porque ele é representante direto do capital, dos bancos e do agronegócio. É diferente.
Mas não tenho grandes expectativas. Eu me lembro que, antes das eleições, discuti com amigos próximos do PT que diziam: “você vai ver, a Dilma fez uma campanha de esquerda, ela vai ter que tomar medidas radicais”. Eu não acredito. E as primeiras medidas do governo pós-eleições provam essa descrença: são dirigidas ao mercado, especialmente ao mercado financeiro. Ficou muito claro.
Houve, ao mesmo tempo, uma ofensiva conservadora da direita tradicional, bastante radicalizada, em torno do Aécio, e uma extrema-direita de corte fascista, ou fascistizante, que se manifestou no novo Congresso eleito, com figuras como Jair Bolsonaro e outros partidários da ditadura militar. Bastante preocupante. Além de outras figurinhas que foram eleitas, gerando um deslocamento brasileiro.
Ainda assim, eu insisto que, no Brasil, e na América Latina em geral, o panorama é bem mais alentador do que na Europa.
Na França, temos uma situação de crise. O governo social-liberal é um fracasso total. Não tomou praticamente nenhuma medida de esquerda, salvo aquela a favor do casamento gay. E o problema é que a raiva das pessoas é capitalizada pela extrema-direita, fascista, homofóbica, xenofóbica etc. Isso é muito preocupante. No Brasil, existe essa postura, mas é limitado. Aqui, nas manifestações de extrema-direita, vão 2.500 pessoas na Avenida Paulista. Na França, contra o casamento gay, saíram um milhão de pessoas. Tem diferença.
Correio da Cidadania: Dentro de tal contexto, o que é a esquerda na Europa hoje? Partidos como o Podemos espanhol e o Syriza na Grécia podem ser tidos como tais?
Michel Löwy: Obviamente, não há nada a esperar da socialdemocracia europeia. O social-liberalismo latino-americano é bem mais avançado socialmente do que o seu equivalente europeu, que é completamente alinhado com as receitas neoliberais. Vemos na França: a única coisa que se sabe fazer é desviar dinheiro dos impostos, fazer com que os ricos paguem menos impostos e o povo pague a conta. Toda a política funciona em torno disso, de modo que desse mato não sai mais cachorro.
O que existe, então, é a esquerda radical, anti-neoliberal, que na maioria dos países da Europa tem dificuldade de se posicionar como alternativa e capitalizar o descontentamento. A extrema-direita está com um grande avanço na maior parte dos países da Europa. Uma das exceções mais interessantes é a Grécia, onde a extrema-direita é forte, mas não passa de 10%, e a esquerda radical, organizada na coalizão do Syriza, anda por volta de 30%. É uma esperança.
Não sou muito otimista a médio prazo, porque, mesmo que o Syriza ganhe as eleições, dificilmente terá a maioria no parlamento da Grécia. Porque precisaria de aliados e não tem. O Partido Comunista na Grécia, infelizmente, é ultra-stalinista, ultra -sectário, pensa que o Syriza é o inimigo principal. Já vimos uma cisão de direita no Syriza, chamada Esquerda Democrática, que vem do Partido Social Democrático. Mas está muito enfraquecida, pelo jeito nem vai entrar no congresso. Enfim, o Syriza não tem aliados e não sei como poderá ter a maioria no parlamento. Vai ser complicado.
E tem essa novidade espetacular que é o Podemos, muito interessante, a expressão política do movimento dos Indignados, que não encontrava o canal político para se exprimir porque a esquerda tradicional, a Esquerda Unida, o Partido Comunista Espanhol, não se deram conta da importância desse movimento, ficaram de fora. E eles conseguiram criar o Podemos, que tem uma ascensão espetacular. Tem seus problemas, mas é um fenômeno bem promissor.
Correio da Cidadania: Seria o Podemos uma promessa de casamento, pontes, entre esses grandes movimentos, como Occupy, Indignados, e aquilo que se chama de esquerda na Europa?
Michel Löwy: Não sei se dá pra dizer que isso vai se generalizar. Por enquanto, temos essas duas experiências, que são muito boas. O Syriza é uma coalizão mais tradicional de forças de esquerda, de matriz comunista, no sentido amplo. O Podemos já é outra coisa. É um “objeto político não identificado”. É anti-neoliberal, crítico, mas é difícil dizer. Possui correntes de esquerda, organizadas, mas o Podemos, enquanto tal, não tem uma identidade política muito definida. De toda forma, é contestador do sistema, das políticas de governo. Isso é fundamental.
No entanto, não sei se algo do gênero vai acontecer em outros países da Europa. Na Itália, quem capitalizou o descontentamento foi o Beppe Grillo, humorista que é uma espécie de Tiririca italiano, com um movimento confuso, às vezes você pensa que é de direita, às vezes você pensa que é de esquerda. É difícil classificar. A esquerda propriamente ficou completamente marginalizada. Na França, também como já disse, o panorama não é positivo para a esquerda...
O cenário modifica muito de país para país.
Não sei o que vai acontecer. Por enquanto, a extrema-direita é que vai de vento em popa.
Correio da Cidadania: Você diria, portanto, que a Europa tem apresentado um dos piores cenários globais das lutas sociais e sua possibilidade de inserção popular, ainda que vejamos alguns impulsos aqui e acolá?
Michel Löwy: Sem dúvida. Pelo menos existem lutas em dois países, onde há um clima comparável ao da América Latina. Hoje em dia, os europeus olham muito para a América Latina. Mesmo a França olha muito para a América Latina, procurando se inspirar. A América Latina está bem mais avançada.
Correio da Cidadania: No Brasil, como imagina que ficarão as pautas associadas aos movimentos populares e progressistas nesse próximo período?
Michel Löwy: Os movimentos sociais no Brasil não são homogêneos. Alguns estão muito atrelados ao PT e, portanto, ao governo. É o caso da CUT. Ela não mobiliza uma luta que enfrente o governo. De tempos em tempos, mobiliza-se para causas democráticas, como reforma política, aumento do salário mínimo... Enfim, a CUT pode ser parceira só de algumas mobilizações.
O MST é muito mais autônomo. Embora também tenha vínculos com o PT e dependa em parte do governo e seu subsídio, tem mais autonomia, é mais propositivo, mais crítico. As grandes mobilizações anteriores a 2013, geralmente, eram puxadas pelo MST. Há também movimentos mais antigos, que continuam existindo nas comunidades de base, e todas as pastorais da igreja, pastoral da terra, pastoral da juventude etc. Há todo um setor importante da igreja que funciona como movimento social. Além dos movimentos de professores, estudantes, advogados...
E há outros movimentos de “tipo novo” surgindo, muito mais autônomos em relação ao PT, com uma dinâmica libertária.
O MPL é um movimento muito interessante, pequeno, mas com impacto social grande. Eles conseguiram simplesmente por fogo no estopim de junho de 2013. Foram eles que fizeram isso. Com a grande inteligência de associar uma reivindicação ao mesmo tempo utópica e realista: a tarifa zero. Que seria factível, se houvesse um governo com um pouco de coragem. Não precisa de revolução para termos tarifa zero. Mas ela implica comprar uma briga com a máfia do transporte, entre outras iniciativas que nenhum governo ou prefeitura ousam levar adiante.
A tarifa zero é, portanto, uma proposta popular, importante, factível, e o MPL foi quem a apresentou. Além disso, é uma proposta ao mesmo tempo social e ecológica. Porque, se existe o passe livre, a circulação de automóvel diminui, e a emissão de gases diminui automaticamente.
Eles tiveram essa reivindicação utópica, é claro, junto com uma reivindicação imediata, concreta. Essa foi a inteligência deles. Juntar os dois elementos foi formidável. Realmente é um movimento exemplar. Quando voltei à Europa, no ano passado, tentei convencer os meus amigos da esquerda europeia a se inspirarem no MPL (risos).
Correio da Cidadania: É difícil prognosticar, mas você acredita que se desenha um tempo propício para novas rebeliões populares, no Brasil e no mundo, a exemplo das que vimos mais recentemente?
Michel Löwy: Os sociólogos e os historiadores já têm muita dificuldade para entender o passado. O presente ainda mais. Assim, prever o futuro... O bom do futuro é justamente que as coisas são inesperadas. Todas as grandes revoluções são inesperadas. A revolução russa, ninguém esperava. E a cubana, menos ainda. Felizmente, os acontecimentos, as explosões, as revoltas, as revoluções sempre ocorrem onde não se espera, no momento que menos se espera e da forma que menos se espera. Essa que é a beleza. Se tudo fosse já previsto, o mundo seria muito chato.
Correio da Cidadania: Você destacou que o MPL teve a lucidez que acendeu o pavio das lutas sociais a partir de causas muito presentes e pertinentes da nossa vida cotidiana. É possível vislumbrar que as bandeiras ambientais, especificamente do chamado ecossocialismo, possam causar impacto semelhante?
Michel Löwy: Penso que a causa ambiental é altamente explosiva. Na medida em que se entendem as suas proporções, a relação com o funcionamento do sistema capitalista e a total incapacidade de governos burgueses, de várias cores, em tomar qualquer medida, há que se chegar a uma consciência anticapitalista. É a nossa aposta. Mas temos de partir de lutas concretas, dos “vinte centavos”. Das lutas indígenas contra uma multinacional de petróleo, daquelas moças que arrancaram os plantios transgênicos...
Por exemplo, agora, tem a questão da água, fundamental. Essa crise da água possui uma relação direta, todo cientista está dizendo, com o desmatamento da Amazônia. Só que os políticos e a mídia preferem não falar, porque se coloca um problema e tanto. Eles falam que vão abrir uma represa aqui, desviar o rio por lá e tal. Tapar o buraco. Mas não sabemos de onde vem o buraco.
O importante pra nós, ecossocialistas, é fazer o trabalho de conscientizar as pessoas, ajudando-as a entender que há uma relação direta entre destruição da Mata Atlântica, o desmatamento da Amazônia e a crise da água. E vai se agravar: se deixarmos a situação prosseguir como está, veremos a desertificação. Vamos pouco a pouco perdendo as fontes de água potável. Isso vai acontecer no Brasil, nos países da América Latina, na Europa, no mundo inteiro.
Porém, é uma corrida contra o tempo. Será que vamos conseguir mobilizar as pessoas para enfrentarem o sistema antes que o processo se torne irreversível? Não sei. Simplesmente temos que agir com o otimismo da vontade.
Correio da Cidadania: Quanto a um outro de seus livros, ‘O capitalismo como religião’, gostaria de fazer algum comentário?
Michel Löwy: Na realidade, trata-se de uma reedição, mais ampliada, com novos ensaios, novos documentos. Não é uma tentativa de formular um sistema doutrinário fechado, mas ensaios sobre alguns aspectos do ecossocialismo, tentando explicar o que é, por que o ecossocialismo procura se articular ao marxismo, à crítica marxista e à economia política, de modo a fazer a crítica ecológica do desastre ambiental, do produtivismo. Trata-se de juntar as duas coisas e, em particular, contar a história de como foi se desenvolvendo a ideia ecossocialista, como foi se organizando. Hoje em dia, ela tem uma certa difusão na Europa e na América Latina. É algo novo.
No Brasil, concretamente, o ecossocialismo tem um grande precursor, que é o Chico Mendes, um ecossocialista e ecologista que juntava os dois contextos de maneira muito radical, muito consequente. É uma belíssima figura que pode nos inspirar para as lutas aqui no Brasil.
O ecossocialismo é uma proposta positiva, que implica em uma crítica das formas produtivistas. É uma proposta do século 21, que visa superar tanto o socialismo do século 20 como a socialdemocracia, o stalinismo, além de também trazer uma crítica à ecologia defendida pelo Partido Verde, por partidos sociais-liberais, enfim, aquela ecologia adaptável ao mercado.
É uma proposta radical, que propõe, no fundo, uma mudança de paradigma da civilização bastante ampla, profunda e radical. Mudar as relações de produção, os sistemas de transporte. O que estamos questionando são os padrões e paradigmas da civilização capitalista, industrial, ocidental.
Eu sempre cito uma frase do Walter Benjamin, um dos meus pensadores favoritos: “o que é a revolução? Marx dizia que as revoluções são as locomotivas da história, mas talvez seja um pouco diferente. Talvez as revoluções sejam a humanidade puxando os freios de urgência para parar o trem”.
Eu penso exatamente assim. Nós estamos todos num trem suicida, o trem da civilização capitalista, que está caminhado com rapidez crescente para o abismo, no caso, da catástrofe ecológica e da mudança climática. Portanto, a revolução é parar esse trem antes que seja tarde demais.
Correio da Cidadania: Finalmente, como entra a teologia da libertação, outro foco de seus estudos, em tudo o que foi discutido aqui? E o que pensa do papa Francisco?
Michel Löwy: Eu vou voltar um instante ao meu livro, A Jaula de Aço, que tem um capítulo chamado “A ética católica e o espírito do capitalismo”. Nele, procuro mostrar que Weber nunca escreveu um livro sobre o catolicismo, nem mesmo um artigo, mas ele tem algumas indicações pra explicar por que a ética católica não se dá bem com o capitalismo. Ele diz que a ética católica não consegue se entrosar, e resiste, ao caráter impessoal do capitalismo. Sempre aparece, volta e meia, uma atitude de hostilidade ou de antipatia da ética católica para com o capitalismo. É claro que tal hostilidade, durante muito tempo, veio pela direita.
A história da América Latina, nos últimos 40, 50 anos, tem muito a ver com a chamada teologia da libertação, que, a meu ver, é cristianismo da libertação. Tivemos a revolução sandinista, o movimento operário-camponês brasileiro, o levante de Chiapas, todos com elementos muito fortes desse cristianismo da libertação. E apareceram figuras impressionantes, bispos como Oscar Romero, Samuel Ruiz, também leigos, como o Plinio Arruda Sampaio, socialista cristão e figura extraordinária.
A teologia da libertação é, assim, uma dimensão fundamental da história das lutas e revoluções contemporâneas. Claro que, nos últimos 20 anos, houve uma dura campanha do Vaticano pra marginalizar e desmantelar tal movimento. O que foi obra de João Paulo II e Bento XVI. Não conseguiram fazê-la ruir inteiramente, mas reduziram seu espaço.
Quando o Francisco foi eleito, não esperava grande coisa. Considerando seu passado na Argentina, não tinha muita expectativa. Mas me enganei. Ele surpreendeu com uma série de iniciativas corajosas. Dentre outras, ele escreveu um texto muito crítico do capitalismo e convidou Gustavo Gutierrez, além de movimentos sociais, para irem ao Vaticano. Se puder continuar por mais anos, e não morrer misteriosamente, como João Paulo I, vai criar uma conjuntura nova, mais favorável ao cristianismo da libertação.
Obviamente, há uma resistência muito grande no Vaticano, de setores conservadores, que tentam barrar suas propostas. Como me narrou um amigo, a Opus Dei tem uma oração muito simbólica: “pai nosso que estais no céu, ilumine-o. Ou elimine-o”.
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