Por Ana Raquel Macedo, de Brasília
Considerada pela ONU a terceira melhor lei do mundo
de enfrentamento à violência contra a mulher, a Lei Maria da Penha ainda
esbarra em alguns entraves para ser cumprida integralmente. Os problemas vão
desde um comportamento machista de alguns juízes e delegados até o número
insuficiente de delegacias e varas especializadas. No segundo capítulo da série
especial sobre a violência contra a mulher, entenda as dificuldades enfrentadas
pelas vítimas na hora de procurar a justiça. E confira as recomendações e
propostas da comissão que investigou o assunto no Congresso. A reportagem é de
Ana Raquel Macedo.
240 relatos de violência contra a mulher foram
registrados por dia pela Central de Atendimento à Mulher, o Ligue 180, em 2012.
Dos mais de 88 mil atendimentos, quase 57% referiam-se a casos de violência
física, seguidos de denúncias de violência psicológica, moral, sexual e
patrimonial. Entre os relatos, 89% tinham como agressor o companheiro, cônjuge,
namorado, ex-marido ou ex-namorado da vítima.
No total, o Ligue 180 realizou mais de 700 mil
atendimentos no ano passado, entre denúncias e pedidos de informação. Um
aumento de 11% em comparação a 2011. O serviço foi criado em 2005 pela
Secretaria de Políticas para as Mulheres para escutar e orientar mulheres em
situação de violência. Desde a sanção da Lei Maria de Penha, em 2006
(11.340/06), essa tem sido uma das principais causas de ligação à central.
Apesar de não haver um sistema nacional unificado
de informações sobre violência contra a mulher, dados registrados pelos
sistemas de saúde e levantamentos feitos pelo IBGE sobre o tema também indicam
a prevalência de casos envolvendo companheiros e ex-companheiros das vítimas,
bem como as ocorrências em residências dos envolvidos.
É difícil afirmar se os registros têm se mantido
altos porque mais mulheres se sentem motivadas a denunciar ou se a violência,
em si, continua aumentando. Uma constatação preocupante, no entanto, é que
muitos dos casos relatados não chegam às delegacias e, consequentemente, não
são encaminhados à Justiça. Pesquisa da Fundação Perseu Abramo, de 2010, indica
que apenas um terço é levado às autoridades.
Para a comissão de inquérito que investigou no
Congresso a violência contra a mulher entre 2012 e 2013, o quadro é grave e
demonstra a insuficiência de equipamentos públicos adequados para receber as
vítimas. Segundo o relatório final do grupo, o país conta com 408 Delegacias da
Mulher e 103 núcleos especializados em delegacias comuns. A maioria está
concentrada nas capitais e regiões metropolitanas.
Mesmo onde há as delegacias, a comissão constatou a
situação de abandono de muitas delas, dificultando o registro de boletins de
ocorrência e tomada de depoimentos das vítimas ou testemunhas. Uma das poucas
exceções é a Delegacia da Mulher do Distrito Federal, que, apesar de localizada
no Plano Piloto –longe das regiões com mais concentração feminina na capital–
conta com uma estrutura adequada para atendimento às mulheres.
A Delegada-chefe da delegacia do DF, Ana Cristina
Melo Santiago, concorda que é fundamental um acolhimento adequado às mulheres
vítimas de violência.
"Nós precisamos que tenha esse conhecimento
muito específico dessas questões, para que essa mulher, quando venha a uma
delegacia, a gente sabe que ela rompeu vários obstáculos, internos, emocionais,
sociais, culturais, até ela decidir pelo registro da ocorrência. Então, quando
ela chega no balcão, ela, de forma alguma, pode ser revitimizada. Ela tem que
encontrar profissionais capacitados e conhecedores dessa dinâmica da violência,
para que ela seja acolhida e não tratada como uma espécie de corresponsável
pela violência que ela sofreu.”
Não é só nas delegacias que as vítimas podem
encontrar problema. A comissão de inquérito também constatou que os Tribunais
de Justiça do país não dão a devida atenção à Lei Maria da Penha. Apesar das
recomendações do Conselho Nacional de Justiça, falta orçamento para a
instalação de juizados e varas especializadas. Segundo a comissão, são 66
Juizados Especializados de Violência Doméstica no Brasil.
Para a relatora da investigação, senadora Ana Rita,
do PT do Espírito Santo, o machismo também continua forte nas instituições.
"Eu diria que esta questão do machismo é muito
presente nas instituições também, o que dificulta a aplicação da nossa
legislação, em particular da Lei Maria da Penha. Falta capacitação dos
profissionais. Precisamos investir muito na capacitação, não só de quem atende
lá na ponta, como são os policiais na delegacias, que precisam de capacitação
intensa. Mas também de promotores, de juízes, de todos aqueles que têm papel no
andamento do processo”.
A CPI constatou, por exemplo, que juízes em
diferentes estados continuam aplicando a Lei Maria da Penha como lhes convém,
usando, inclusive, instrumentos já proibidos pelo Supremo Tribunal Federal,
como a suspensão do processo pela admissão de que lesões decorrentes de
violência doméstica e familiar podem ser de menor potencial ofensivo.
A comissão criticou, ainda, decisão recente do
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em não considerar como passível de
análise pelo juizado especializado o caso de agressão envolvendo o ator Dado Dolabella
e sua ex-namorada, a atriz Luana Piovani. O argumento é de que eles não eram
casados e de que não havia relação de vulnerabilidade entre a atriz e o
namorado à época da agressão. O caso está agora no Superior Tribunal de Justiça
e, na avaliação do advogado de Piovani, Marcelo Salomão, pode se tornar um
divisor de águas na aplicação da Lei Maria da Penha.
"Se prevalecer esse entendimento desta Câmara
do Tribunal de Justiça do RJ, praticamente, em todos os casos envolvendo
violência doméstica, será exigida a produção de uma prova inicial quanto a essa
vulnerabilidade, dependência quanto à situação de opressão da mulher. Não
havendo a caracterização de opressão da mulher – e isso é um conceito até
subjetivo- , a lei não é aplicada. Acho que a decisão do tribunal contraria o
espírito da lei e interpreta de uma maneira praticamente espúria a aplicação da
lei em relação à maioria dos casos. (…) A pessoa famosa e autônoma, como essa
vítima de quem estamos falando, ela não pode ser vítima de violência doméstica?
E outra coisa: violência doméstica só pode acontecer em casa?”.
O juiz Álvaro Kálix Ferro, conselheiro do CNJ,
reconhece que há problemas na aplicação da Lei Maria da Penha, mas diz que, em
sete anos, a norma tem motivado aos poucos uma mudança na cultura de tolerância
à violência.
"Essa questão da violência contra a mulher é
de uma complexidade ímpar. Além da penalização, existe todo um trabalho que é
preciso fazer, seja com a mulher, seus familiares e até com o agressor, como a
própria lei diz no seu art. 30, que pode ser encaminhado para cursos,
compreensão da questão de gênero, para a questão da violência. Há necessidade
dessa interdisciplinaridade e ela só ocorrerá se cada um dos órgãos, incluído o
Poder Judiciário, atue bem com equipes multidisciplinares”.
Para a comissão que investigou a violência contra a
mulher no Congresso, é possível aperfeiçoar a legislação. Entre as mudanças
propostas à Lei Maria da Penha, está a a obrigação de o juiz, ao encaminhar
mulheres para abrigamento, analisar necessariamente os requisitos da prisão
preventiva do agressor, para evitar que o réu permaneça solto enquanto a vítima
se mantenha com a liberdade restringida em uma casa-abrigo. Outra proposta é
para que esteja explícita na lei a impossibilidade de se perguntar à vítima o
interesse em desistir do processo penal.
Na luta pelo rompimento do ciclo de agressões, não
pode haver brecha para a impunidade, segundo Lourdes Maria Bandeira, da
Secretaria de Políticas para as Mulheres.
"Quando uma mulher denuncia que foi agredida,
ela tem que ser encaminhada ao sistema de Saúde, ao IML, ao Ministério Público.
Isso tem que ser investigado, se tornar um processo. Há uma complexidade
grande, que muitas vezes, dada ausência e condição de recursos, muitas vezes
pela própria falta de equipamento desses órgãos, acaba que processo se perde no
meio do caminho. E, sem contar também, que nem sempre a sensibilidade de todos
os agentes públicos está voltada para este problema”.
Na tentativa de tornar mais eficaz o atendimento às
vítimas, o governo federal lançou recentemente o programa "Mulher, Viver
sem Violência”, com previsão de verba de R$ 265 milhões. Entre as medidas, está
a construção das chamadas Casas da Mulher Brasileira nas 27 capitais, com
serviços integrados de delegacia, juizado especializado, ministério público,
defensoria, abrigamento temporário, espaço de convivência, sala de capacitação
e brinquedoteca.
Amanhã, na terceira matéria da série especial sobre
a violência contra a mulher, acompanhe como funcionam os instrumentos de
proteção e assistência às mulheres que precisam deixar casa e emprego para
fugir das agressões.
[Acesse no site de origem: Os
avanços e os desafios da Lei Maria da Penha (Agência Câmara – 03/09/2013)]
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