Comentários
de Adelia Bezerra de Meneses sobre o novo livro de Frei Betto: Aldeia do
Silêncio. Rio de Janeiro, Rocco, 2013
Finalizando com uma tocante reverência à Palavra,
ou melhor, à linguagem ("Da vida
guardo uma única certeza: meu universo se limita à minha linguagem”, p.
191), este livro do Frei Betto trata fundamentalmente do Silêncio – e de tudo
aquilo que, na vida humana, dele necessita para subsistir: reflexão,
comunicação profunda entre seres, comunhão com a natureza, contemplação,
experiência mística, mergulho na Transcendência.
Parte-se do artifício narrativo do encontro de um
diário deixado por um paciente ao morrer num hospital onde passou seus últimos
17 anos, sem nunca ter fornecido nenhuma informação sobre sua identidade. Nesse
hospital ensinaram-lhe a ler e a escrever; e ele, a alma forjada no silêncio,
mergulha em leituras e escreve num caderno suas experiências, atuais e
passadas. Através desse escrito, sabemos que esse homem tinha vivido antes numa
aldeia despovoada, abandonada por seus antigos habitantes, na companhia exclusiva
do avô, da mãe e de dois bichos; de um avô que lhe ensinara a "fidelidade ao silêncio”, e da mãe que
"também não desperdiçava palavras,
guardava-as em si, alma e língua” - personagens míticos que viviam num
eterno presente, num lugar também mítico, de onde são violentamente arrancados
para o mundo dito "normal”.
Com efeito, morto o avô e vendida a aldeia, o
protagonista é rudemente obrigado a abandoná-la, arrastado à cidade grande e,
imerso em seu quietismo, acaba numa delegacia, onde é brutalmente torturado -
por não falar. Reduzido a um corpo, "banido de toda humanidade”,
refugia-se mais ainda no silêncio, recusando-se a dar-se a conhecer aos seus
torturadores. Jogado após 2 meses na rua, quebrado, maltrapilho e anônimo, é
encaminhado ao Hospital onde permanecerá até o fim de seus dias. Sempre sem
identidade, ou melhor: chamam-no "Nemo” (= Ninguém). Mas agora ele
escreve.
A trama narrativa , no entanto, serve apenas para
sustentar o arcabouço de uma reflexão sobre palavra e silêncio, em contraponto.
Um extraordinário ensaio sobre o Silêncio. Sobre o silêncio que não é falta de
fala, ausência de ruídos exteriores, mas "aquietação de si, mergulho imponderável que permite decifrar enigmas
interiores.” E numa das passagens mais intensas do livro, o narrador nos
brinda com o relato de um desses mergulhos epifânicos no coração do silêncio,
uma experiência dos seus tempos da aldeia, em que os adeptos da meditação
certamente reconhecerão essa prática: "a
mente fixa no nada, os olhos vazados de visão, a respiração pontuada, esquecido
de mim”, o que levará o meditante / contemplativo à vivência daquilo que é
o alvo da meditação transcendental, a experiência do vazio, a experiência do
existir: "No vazio da mente, eu me
afirmava como ser.” (p. 62). E na sequência somos confrontados com uma
experiência radical, poderosa, em que se travejam o erótico e o sagrado -- e
que só se poderia chamar de mística:
"Havia
êxtase, vibração, fruição, gozo. Um frenesi místico, o cintilar de misteriosas
luzes interiores, estado de embriaguez fulgurante, como se as contrações
espasmódicas do Universo coubessem agora, no aninhamento do espírito. Ali,
tomado por essa ânsia ascendente, eu me embebia de divindade, atirava-me à
luxúria volátil de algo ou alguém que me possuía por dentro. Então,
experimentava a exuberância de vida, o palpitar acelerado do coração, o ardor
de um fogo que se alastrava sem queimar, se espalhava sem consumir, fogo que
tudo envolvia [...]”(p. 63).
E a partir daí (cf., sobretudo, págs. 64 e 65) vai
se desdobrar um leque de imagens para se dizer o indizível – em que se
reconhecerão, esparsas no texto, as figurações dos grandes místicos, de San
Juan de la Cruz e de Tereza d´Ávila: além do fogo, a chama viva, a música
calada, o tudo que é nada, a fonte de água viva, o voo, o paradoxo, a
ultrapassagem das fronteiras.
"Rompeu-se
a película entre mim e o outro. Ele, o meu avesso, avesso que expressa meu mais
genuíno ser, onde todas as carências se suprimem, as comportas cedem, as
barreiras caem, os limites se rompem, e só o amor impera, enquanto minhas
entranhas ganham asas e meu espírito se inebria de deleites, os mais indizíveis
deleites”.
Ali permaneci
em alerta espiritual. Tudo em volta se deixou tomar por um silêncio
ensurdecedor, silêncio a brotar de dentro para fora, a prenunciar indefinível
Presença”. (p. 65).
Não é o caso de continuar as citações – embora elas
sejam imprescindíveis, impossível parodiá-las. Fica o convite à leitura direta.
Mas creio que o que apontei já é suficiente para que nós compreendamos porque é
que Nemo, o narrador, no penúltimo parágrafo do livro, comentando sua morte
próxima, declara:
"Então,
livre de todos os véus que cobrem os mistérios, mergulharei para sempre na
fonte da Palavra”. (p. 191).
Com este livro, Frei Betto nos conduz ao limiar de
uma aventura; indispensável não tomar conhecimento dela.
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