quinta-feira, 8 de maio de 2014

A hospitalidade para com os haitianos: quão humana é a nossa sociedade?



Por Leonardo Boff

O drama de centenas e centenas de haitianos, vítimas de devastador terremoto, que, via o Estado do Acre, buscam hospitalidade no Brasil, representa um teste de quanto humana é ou não é a nossa sociedade. Não queremos nos restringir somente aos haitinos, mas aos tantos que são expulsos de suas terras, posseiros, indígenas, quilombolas e outros, pelo avanço do agronegócio, das hidrelétricas ou desalojados  como recentemente do prédio da OI no Rio de Janeiro e que tiveram que se refugiar na praça da Catedral da cidade. Organismos da ONU nos dão conta de que existem no mundo alguns milhões de refugiados por guerras, por problemas de fome ou climáticos e outras causas semelhantes. Quais Abraãos andam por ai buscando quem os acolha e terra para trabalhar e viver. E não encontram. E quantas naves são rejeitadas tendo que vagar pelos mares no meio de todo tipo de necessidades e desesperanças.

Basta lembrar os refugiados de África que chegam à ilha italiana de Lampeduza. Receberam a solidariedade do Papa Francisco, ocasião em que fez as mais duras críticas à nossa civilização por ser insensível e perder a capacidade de chorar sobre a desgraça de seus semelhantes. Todos estes padecem sob a falta de hospitalidade e de solidariedade.

No Brasil, nos jornais mas especialmente na mídias sociais, se  deslanchou acirrada polêmica sobre como tratar os haitianos desesperados e depauperados que estão chegando ao Brasil. O Governador Tião Viana do Acre  mostrou profunda sensibilidade e hospidade acolhendo-os a ponto de, com os meios parcos de um Estado pobre, não dar conta da situação. Teve  que pedir socorro ao Governo Central. Mas foi de forma desavergonhada injuriado por muitos nas redes sociais e no twitter. Aí nos damos conta quão desumanos e sem piedade algumas pessoas podem ser. Nem respeitam a regra de ouro universal de tratar os outros como gostariam de ser tratados. Segundo o notável biólogo chileno Humberto Maturana, tais pessoas retrocedem ao estágio pre-humano dos chimpanzés que são societários mas autoritários e pouco hospitaleiros.

É neste contexto que a virtude da hospitalidade ganha especial relevância. A hospitalidade disse-o o filósofo Kant em seu último livro A Paz Perpétua  (1795): é a primeira virtude de uma república mundial. É um direito e um dever de todos, pois todos somos filhos e filhas da mesma Terra. Temos o direito de circular por ela, de receber e de oferecer hospitalidade.

Um dos mais belos  mitos gregos concerne   à hospitalidade. Dois velhinhos muito pobres, Baucis e Filemon, deram acolhida a Júpiter e a Hermes que se travestiram de andarilhos miseráveis para testar quanta hospitalidade ainda restava sobre a  Terra. Foram repelidos por todos. Mas  foram calorosamente acolhidos pelos bons velhinhos que oferecem comida e a própria cama. Quando as divindades se despiram de seus trapos e mostraram a sua glória, transformaram a choupa num esplênido templo. Os bons velhinhos se prostraram em reverência. As divindades pediram que fizessem um pedido e que seria prontamente atendido. Como se tivessem combinado previamente,  ambos disseram que queriam continuar no templo recebendo os peregrinos e que no final da vida, os dois, depois de tão longo amor, pudessem morrer juntos. E foram atendidos. Anos após, num mesmo momento, Filemon foi transformado num enorme carvalho e Baucis numa frondosa amoreira. Os galhos se entrelaçaram no alto e assim ficaram até os dias de hoje, como se ainda se conta. Disso foi tirada uma lição que passou para todas as tradições: quem acolhe um pobre, hospeda o próprio Deus.

A hospitalidade exige uma boa vontade incondicional para acolher o necessitado e o que se encontra sob grande sofrimento.

Ela exige também escutar atentamente o outro, mais com o coração do que com os ouvidos para captar a sua angústia e as suas expectativas.

Ela exige outrossim uma acolhida generosa, sem preconceitos de cor, de religião e de condição social. Evitar tudo o que o fizer sentir-se um indesejado e um estranho.

Estar aberto ao diálogo sincero para captar sua história de vida, os riscos que passou e como chegou até aqui.
Responsabilizar-se conscientemente junto com outros para que encontre oum lugar onde morar e um trabalho para ganhar sua vida.

A hospitalidade é um dos critérios básicos do humanismo de uma civilização. A ocidental vem marcada  lamentavelmente por preconceitos de larga tradição, por  nacionalismos, pela xenofobia e pelos vários fundamentalismos. Todos estes fecham as portas aos imigrados ao invés de abri-las e, compassivos, compartilhar  de sua dor.

É nesse espírito que a hospitalidade para com nossos irmãos e irmãs haitianos deve ser vivida e testemunhada. Aqui se mostra se somos, como se diz, de fato, um povo de cordialidade e de acolhida aberta a todos; o quanto temos crescido em nossa humanidade e melhorado nossa civilização ainda em formação.



Diretoria do Sepe Núcleo Rio das Ostras e Casimiro de Abreu


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