Por Marco Piva
Recentemente, as redações de grandes jornais e de algumas rádios e TVs foram tomadas pela pior notícia que um trabalhador pode receber: uma onda de demissões. Segundo as informações oficiais dos próprios veículos, foram mais de 150 jornalistas dispensados. Corporativamente, esse fenômeno que ataca as redações é conhecido como “passaralho” (deixo à imaginação do leitor o que isto significa). No caso do jornal O Estado de S. Paulo, a dispensa ocorreu no dia 7 de abril, ironicamente o Dia do Jornalista.
Muitos colegas condenaram as demissões. Algumas chamaram a atenção porque atingiram profissionais experientes, com décadas de prestação de serviços aos seus veículos. Foi o caso de Cláudio Carsughi, que trabalhou 58 anos na Rádio Jovem Pan. Mas, em geral, foram questionamentos lúdicos sobre a realidade daquela que já foi, provavelmente, uma profissão onde o talento para se contar histórias valia o espaço que ocupava. O tom crítico contra as demissões, porém, esbarra exatamente naquilo que falta a todas as profissões hoje em dia, e não somente ao profissional da imprensa: ler a História. E ler o quê? De um modo geral, ler para saber em qual sociedade vivemos, quais são as dinâmicas das relações de trabalho, as consequências da oligopolização do capital financeiro, as tramas dos discursos dominantes e por aí vai.
Desconhecer que os recentes vôos do “passaralho” sobre as redações se dá por conta de algo concreto que é a completa inutilidade de certos meios de imprensa na atualidade tecnológica e simbólica que vivemos é desconhecer o essencial. E tocar na ferida é o ponto central se queremos acrescentar alguma coisa a essa discussão. Platitudes de solidariedade ou desdém de cá e de lá resultam na mesma coisa: nada.
Foi justamente por não ter tocado na ferida que muitos profissionais se deixaram envolver pelos mecanismos de dominação ideológica provenientes desse instrumento da superestrutura chamado imprensa. A bela arte de contar histórias ficou relegada a mantras técnicos e a planilhas de custos que foram empurrando o jornalismo para uma insignificância cultural, cuja sobrevivência foi dependendo cada vez mais das verbas publicitárias públicas e privadas.
Chegamos, portanto, ao fundo do poço ou ao final da História. E o que nos resta como espaço público? Pessoalmente, pedaladas fiscais junto aos bancos, uma dose de amor dos parentes e amigos e a eterna ilusão de que fomos importantes um dia. Sem contar outras estratégias criativas de sobrevivência como o site “Implicante”, que faturava R$ 70 mil por mês do governo do Estado de São Paulo para falar mal da Dilma, do Lula e do PT (sim, dinheiro meu, seu, de todos nós, como gostam de dizer por aí).
Mas esses “criativos” (mercado publicitário, sacaram?) são poucos. O fundamental é constatar que o jornalismo tal qual ensinou Pulitzer, nas bandas de lá, e Claudio Abramo, outro grande mestre nas bandas de cá, está morrendo e dando lugar a um ninho de serpentes que carregam em si aquilo que Thomas Hobbes já dizia no século XVIII: a guerra de todos contra todos. O ódio que vemos nas redes sociais, alicerçado em calúnias, mentiras e difamações de toda ordem, é fruto do ser humano que não conheceu uma coisa básica: as leis da dialética ou, para simplificar, tudo aquilo que vai, volta, transformado em coisa pior ou melhor, dependendo da maneira como enxergamos o mundo, as relações dos homens entre si e dos homens com a natureza. Não adianta muito um curso de ensino superior no bolso se o sujeito vai para a avenida Paulista vomitar bobagens como a volta da ditadura militar e dizer impropérios impublicáveis na frente dos filhos para que eles, o futuro da nação, saibam “como é que as coisas tem que ser”.
Mas, voltando ao início do texto, cabe a pergunta: estamos regredindo como civilização? Arrisco a dizer que sim. Na medida que as relações de trabalho tradicionais foram substituídas por formas modernas de produção de mais-valia, o trabalhador vai virando peça de museu na engrenagem que ele mesmo um dia ajudou a criar e o lucro se concentra ainda mais nas esferas societárias financeiras, que ficam acima da Política e dos próprios Estados nacionais, subordinando-os de forma vexatória. Não são as empreiteiras da Operação Lava-Jato contra as quais devemos virar nossas baterias. Por que são inocentes? Não. No limite, elas nasceram, cresceram e se consolidaram como gigantes porque nos últimos 50 anos o desenvolvimento do Brasil, para tomar nosso exemplo caseiro, esteve alinhado com o jeito de se fazer política pública, na ditadura ou na democracia. Até mesmo aqueles grupos que se dispuseram a buscar um caminho alternativo, se deixaram enredar pelas artimanhas do jogo. O resultado está aí para quem quiser ver. Um partido como o PT, que promoveu a maior distribuição de renda e de oportunidade para o povo em 500 anos, sucumbe dia após dia aos seus erros e ausência de autocrítica, mas principalmente ao ataque sem trégua daqueles que se sentiram usurpados em seu poder tradicional e usam todos os meios para “acabar com o partido”, como se isso fosse a missão primordial de depuração da sociedade.
A luta pela hegemonia política é da natureza dos partidos. Acusar o PT de querer se manter no poder, portanto, é de uma estupidez sem tamanho. E se fossemos dizer isso do PSDB, que governa São Paulo há 20 anos, também. Então, a questão, para nós jornalistas ou não, é uma só: entender que existem classes reais na sociedade que o tempo todo estão em choque porque trazem dentro de si a natureza humana e a sua posição social. Como normalmente a esquerda levanta essa tese, ela é acusada de incentivar a luta de classes e o ódio entre as pessoas. Errado. Esta situação existe como fato histórico permanente, admitido até mesmo pelos mais notórios economistas liberais.
Entender as coisas no mundo de hoje é uma tarefa complexa. Sugiro um ponto de partida: os estudos sobre a concentração do capital num grupo cada vez mais restrito de instituições financeiras, cujos donos desconhecemos e que atuam pelo mundo todo. Aí reside a escravidão moderna das nações e de seus povos porque aliena a política e, quando necessário, a criminaliza, de preferência contra aqueles grupos que, embora de forma tímida, tenham ousado enfrentá-los. E num mundo sem grandes questionamentos de como as coisas funcionam, o discurso contra a corrupção na política cai bem aos moralistas, numa réplica típica da era vitoriana que, no final do século XIX, aprovou leis contra o homossexualismo masculino, mas não o fez com o feminino pelo simples fato de acreditar piamente que este não pudesse existir.
Gritar palavrões a torto e à direita sem a menor noção do que está em jogo é burlesco, beira o ridículo. Então não devemos combater a corrupção? Obviamente que sim, mas devemos colocar isso no âmbito do aprofundamento da democracia, único sistema capaz efetivamente de combatê-la. Nesse sentido, o respeito ao Estado de Direito e à presunção da inocência, ao lado de informações objetivas que mostrem os vários lados da questão, são essenciais para que o ódio não seja o motor ilusório das transformações. O jornalista, ou o que resta dele, tem esse dever com a sociedade. Quem sabe seu último compromisso com aquilo que considera notícia.
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