POR
WLADIMIR POMAR
A
classe trabalhadora que emergiu nas greves de 1978 em diante não era
a mesma que travara as grandes lutas dos anos 1950 e início dos anos
1960. Entre 1965 e 1973, a ditadura atraíra grandes capitais
estrangeiros para a área metalomecânica. E, ao realizar a
modernização capitalista dos latifúndios, expulsara grandes massas
de trabalhadores dos campos para servir como força de trabalho na
industrialização. Essa nova classe trabalhadora, portanto, foi
filha do “milagre econômico”. E sua força se devia, em grande
medida, ao fato de haver sido concentrada na região metropolitana da
capital paulista, compreendendo quase 10 municípios, com destaque
para os santos ABC.
As
empresas estrangeiras e nacionais do período do “milagre” haviam
contado, então, com uma enorme força de trabalho excedente, livre
de qualquer propriedade de meios de produção e à disposição de
quem quisesse comprá-la no mercado. Além de se beneficiarem com o
fato de essa força de trabalho considerar o salário, mesmo sob
arrocho, uma conquista nova e positiva, os capitalistas ainda
contavam com uma legislação draconiana de salários comprimidos e
impeditiva de greves e manifestações. A burguesia sentia-se no
paraíso.
No
entanto, à medida que a crise se instalou, a inflação subiu e o
“milagre” mostrou sua cara verdadeira, a nova classe trabalhadora
começou a despertar para a realidade da exploração capitalista e
para a existência de um regime que não tolerava reivindicações.
“Operações tartaruga”, pressões para a organização e
funcionamento de comissões de prevenção de acidentes e outras
manifestações dentro das fábricas eram sinais de que havia
mudanças nas ilusões e no humor daquela classe que operava as
máquinas.
Em
1978 esses sinais transformaram-se em mobilizações grevistas, a
partir da experiência das “máquinas paradas” da Volvo. Elas se
espraiaram por toda a zona fabril do ABC e da capital paulista. Foram
seguidas de greves de várias outras categorias profissionais e
engrossadas pelo Movimento do Custo de Vida. A insatisfação diante
do arrocho salarial e da carestia rompeu a proibição de greves e
reivindicações trabalhistas, tisnando os movimentos dos
trabalhadores de um evidente caráter político. Ao encarar problemas
econômicos, sociais e políticos como problemas militares de
segurança nacional, a ditadura armou a própria arapuca que a
impedia de tratar as greves por salários como problemas econômicos
e sociais.
Desde
as últimas greves e manifestações de 1968, os trabalhadores de
todos os tipos viram-se reprimidos por uma década inteira. Nessas
condições, ao derrubarem a proibição das greves, as camadas
populares também se jogaram a lutas de confronto com as forças
policiais, que resultaram em quebra-quebras. Frente à tsunami de
mobilização social, o governo militar não só reiterou sua
disposição de combater a proliferação de movimentos
reivindicatórios, como afirmou que tais movimentos não podiam nem
deviam utilizar conceitos democráticos para apressar as mudanças em
curso. Da mesma forma que faziam os políticos centristas e o PCB, o
regime considerava que a mobilização social levaria a retrocessos
políticos, não à democracia.
Ao
atirar essa pedra sobre as centenas de milhares de trabalhadores
mobilizados, a ditadura politizou ainda mais o movimento econômico e
social, colocando-o diante do significado real da democracia. Jornais
e revistas da época conseguiram colocar em circulação algumas das
expressões que pessoas comuns utilizavam para explicar o conceito
democracia. Iam dos simplórios “homem livre”, “não cativo”,
“direito de reclamar” aos mais complexos “demonstração da
vontade popular” e “participação do povo no governo”. O que
nada tinha a ver com a concepção de “democracia disciplinada”
do governo militar.
Durante
todo o ano de 1978, tendo por base uma série de greves mobilizando
centenas de milhares de trabalhadores, inúmeros dirigentes sindicais
passaram a realizar reuniões conjuntas e a discutir suas
reivindicações e suas opiniões sobre a democracia que achavam
necessária para o país. De imediato, chegaram a uma pauta comum,
incluindo direito de greve, autonomia sindical, revogação da Lei
Falcão, fim dos senadores biônicos, eleição direta, justa
distribuição de renda, e outras reivindicações que extravasavam
as pautas econômicas e sociais e ingressavam decididamente na pauta
política.
No
final daquele ano, os metalúrgicos de São Bernardo aprovaram a
criação de uma Central Única de Trabalhadores e passaram a
trabalhar no sentido de colocar em prática a decisão, embora o
governo tenha declarado tratar-se de uma ilegalidade. Sem forças
para debelar a onda grevista e o processo de organização sindical e
político dos trabalhadores, o governo Figueiredo convocou alguns dos
dirigentes sindicais mais destacados, como Lula, Olívio Dutra e
Arnaldo Gonçalves, para chegar a algum tipo de acordo quanto aos
reajustes salariais e o combate à inflação. O governo queria um
limite de 5% nos aumentos salariais e uma trégua de dois anos nas
greves.
Nessa
mesma linha, na comemoração do 1º de maio de 1979, o presidente
Figueiredo tentou fazer uma salada mista. Prometeu combater a
inflação e, ao mesmo tempo, considerou “insensatas” as
reivindicações de aumentos salariais, tentando jogar sobre os
trabalhadores a culpa pela elevação inflacionária. Para completar,
ameaçou “aplicar as leis” contra os que ameaçavam o “estado
de direito” e a “tranquilidade da família brasileira”, ou
conduziam à “desordem social”.
Com
razão, e boa dose de coragem, os sindicalistas afirmaram que as
liberdades democráticas jamais haviam existido para os
trabalhadores. E colocaram em dúvida a existência de um “estado
de direito” que não respeitava a liberdade individual e coletiva,
nem o habeas corpus, revogados pelo AI5. Em outras palavras, o novo
sindicalismo expressava o aprendizado das bases operárias em seu
confronto diário com o patronato e, naquela ocasião, com o aparato
antigreve da ditadura. Um conjunto de dirigentes sindicais amadurecia
rapidamente frente aos problemas políticos da sociedade brasileira e
concluía que a democracia pretendida pelos militares no poder nada
tinha a ver com a democracia com liberdades públicas.
Essa
percepção se tornou cada vez mais consciente à medida que as
greves eram consideradas e tratadas, seja pelos empresários, seja
pelo governo, como um assunto de segurança nacional. A pretexto das
reivindicações e mobilizações dos trabalhadores causarem
empecilhos à abertura política, e ao tipo de democracia pretendido
pelo regime em seu processo de retirada estratégica, o grupo militar
no poder desdobrou-se para convencer o conjunto da população de que
os trabalhadores agiam contra os interesses nacionais e eram um
perigo que ameaçava a todos.
Foi
em meio a essas tensões sociais, especialmente resultante das lutas
dos trabalhadores, que a ditadura decidiu, a toque de caixa, realizar
uma reformulação partidária. Seu objetivo tático: dividir a
oposição consentida, organizada no MDB, e reorganizar as forças
conservadoras em diferentes siglas. Em tese, enfraquecer a oposição,
levar em conta as divergências em sua base política, mas
aglutiná-la numa frente única de apoio ao regime.
Essa
reformulação extinguiu os partidos existentes, obrigou os novos
partidos a se denominarem “partidos”, proibiu os militantes
partidários a ter por base credos religiosos, sentimentos de raça
ou classe, e condicionou a existência deles à posse de 10% de
representantes na Câmara e no Senado. O general Figueiredo não se
esqueceu de alertar que as pessoas podiam ser comunistas, mas não
podiam se organizar como partido, algo proibido pela constituição
ditatorial.
O
general Golbery supunha que a reorganização partidária daria lugar
a uns quatro partidos. Um congregaria o democratismo radical da
pequena burguesia existente no MDB. Outro reuniria os liberais do MDB
com alguns liberais presentes na ARENA. Outro atrairia o sindicalismo
pelego do antigo PTB. E outro poderia representar os setores mais
conservadores da Arena. Golbery temia que Brizola empalmasse a
reorganização do PTB e tomou medidas para impedir isso, negociando
apoio a Ivete Vargas. Mas não acreditou na possibilidade de os novos
sindicalistas tomarem a decisão de organizarem um partido de
trabalhadores, que também atraísse as várias correntes de
esquerda, derrotadas no processo da luta armada, incluindo setores
consideráveis dos socialistas e comunistas.
Estava
mal informado, pois a essa altura a formação do Partido dos
Trabalhadores (PT) já fazia parte da pauta de discussão de parte
considerável dos novos sindicalistas e de representantes de várias
correntes políticas clandestinas. Além disso, havia uma clara
tendência de que o PT assumisse como bandeira a democracia
socialista. Isto é, uma democracia em que houvesse iguais
oportunidades para todos e atendesse às novas demandas sociais.
Nessas condições, a coincidência da fundação do PT com a
deflagração de novas greves do ABC foi tomada como confronto à
política de abertura do governo militar.
Bem
vistas as coisas, criou-se uma situação em que foi ficando claro
tratar-se de uma daquelas batalhas na qual se decide o resultado da
guerra, mesmo que esta ainda se prolongue por algum tempo mais. O
governo colocou toda a sua máquina estatal e paraestatal para
impedir o sucesso das greves. O próprio Golbery atuava diretamente
sobre os empresários para impedi-los de negociar com os grevistas, a
pretexto de que seus objetivos seriam políticos, não econômicos.
Também pressionava a Justiça do Trabalho para definir a greve como
ilegal e decretar a intervenção nos sindicatos. Todas as cartas
foram jogadas.
Fonte:
Site Correio da Cidadania
Diretoria
do Sepe Núcleo Rio das Ostras e Casimiro de Abreu
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