Por Wladimir Pomar
Desde
antes de 1964, grande parte da burguesia e de seus representantes políticos
expressava abertamente que, entre um “executivo forte” e “um sistema
democrático de economia fraca”, davam preferência ao primeiro. Ou seja, não
tinham coragem de falar abertamente de sua preferência por uma ditadura. Mas
não escondiam sua opinião de que uma democracia política só seria possível em
países economicamente desenvolvidos.
Essa visão
de “executivo forte” incluía a capacidade do Estado em promover o crescimento
econômico, apoiar a propriedade privada, evitar a interferência estatal na
economia e, principalmente, impedir quaisquer movimentos de trabalhadores. Não
foi por acaso, assim, que as bandeiras levantadas pelo golpe de 1964,
contraditoriamente, além da luta contra o comunismo e as camadas populares,
exigiam a redução do que chamavam “estatismo”. E que o empresariado, em
especial o grande, apoiou ideológica, política e financeiramente não só a
preparação do golpe militar, mas sua realização e sua consolidação através de
um sistema ditatorial.
É isso que
tem levado muitos estudiosos, mesmo de esquerda, a proclamar que o golpe e a
ditadura tiveram um caráter cívico-militar. Ou seja, não teria havido uma
ditadura militar, mas sim uma ditadura civil-militar. Talvez, para serem mais
precisos nessa linha de raciocínio, devessem falar de uma ditadura
burguesa-militar, já que a burguesia foi aquela que realmente lucrou com o
regime militar, e se manteve fiel a ele até seus estertores.
Não é
difícil demonstrar que os militares adotaram políticas benéficas, quase
exclusivamente, a essa classe economicamente dominante. Mas é difícil comprovar
que a burguesia, ou qualquer outra classe social, tenha participado
politicamente da definição do presidente e dos ministros do regime,
especialmente a partir de 1970, quando a escolha do presidente ficou restrita
ao voto dos generais de quatro estrelas do Exército.
A partir
de então, a militarização da sociedade brasileira ficou evidente não apenas na
ocupação da presidência e de vários ministérios por militares. Ela era presente
nas Divisões de Segurança e Informação dos ministérios e outros órgãos
públicos, que faziam o crivo dos funcionários civis de cargos de confiança e
controlavam as políticas setoriais. A escolha dos governadores dos estados
dependia dos comandos das regiões militares regionais e dos oficiais que
serviam à presidência. As polícias militares estaduais eram controladas por um
departamento do ministério da guerra, e comandadas por oficiais generais ou
coronéis do exército.
A
militarização chegou ao absurdo, por algum tempo, de colocar militares para o
exercício da censura às atividades informativas e culturais. O ditador Médici
afirmou que não aceitava contestação ao que chamou de “verdade revolucionária”,
sustentada pelos militares. E, para afogar qualquer tipo de contestação,
modernizou a OBAN, instituindo os DOI-CODIs.
No campo
econômico, feita a limpeza monetarista, tratou de produzir o “milagre” de
crescer acima de 9% ao ano, meta a que deveriam subordinar-se os empresários. E
eles o fizeram prazerosamente, pelo menos até 1973, embora procurassem dar
palpites para frear a estatização de empreendimentos voltados para a construção
da infraestrutura industrial e de áreas de comunicação.
O “milagre
econômico”, porém, fez água com a emergência da crise econômica decorrente do
choque do preço do petróleo. Cresceram as cisões e disputas no interior das
Forças Armadas e na burguesia. Esta aumentou suas reclamações em relação ao
“estatismo”, que se apropriava de parte dos lucros. Mas continuou considerando
que o mais importante consistia em manter a ordem, a tranquilidade e a
segurança. Portanto, apesar das dificuldades, a burguesia não se interessou em
mover sequer uma palha pela democracia.
O grupo
militar que assumiu o governo em 1974, com Geisel à frente, tinha consciência
de que a crise econômica não poderia ser superada apenas com a mão de ferro ditatorial.
Sua “distensão” visava, então, fazer com que a burguesia participasse das
decisões para superar a crise econômica. No entanto, como o “milagre”
brasileiro tivera por base a associação e a subordinação ao capital
estrangeiro, capital que estava no olho do furacão econômico mundial, tal
superação se tornara uma missão impossível naquela conjuntura.
Além
disso, o capitalismo, em especial o norte-americano, iniciara uma profunda
reestruturação econômica e política. Por um lado, erigira o setor financeiro,
inundado pelos petrodólares dos países da OPEP, como carro-chefe de exploração
dos países periféricos. Por outro, reformulara sua estratégia de luta contra o
comunismo. Recuou da onerosa guerra em toda parte, estabeleceu relações com a
China para sair do Vietnã, e concentrou seu poderio econômico para derrotar a
União Soviética através da corrida armamentista e da debacle econômica
Nessas
condições, a bandeira da democracia e dos direitos humanos, que mascarava essa
guinada estratégica, colocou em xeque a continuidade dos regimes ditatoriais
apoiados pelos Estados Unidos em todo o mundo. Já a proeminência do setor
financeiro teve implicações profundas na crise da dívida externa brasileira e
levou a pique os novos planos de desenvolvimento econômico da ditadura.
Assim, a
“distensão” do grupo de Geisel, mesmo que abrisse brechas para a participação
política da burguesia no poder, dificilmente poderia resolver os problemas da
crise. Talvez por isso, a principal preocupação da burguesia diante da
“distensão” não foi “participar no poder”. Segundo inúmeros empresários de alto
coturno, o que os preocupava eram as possíveis brechas que tal “distensão”
poderia abrir para a ação dos trabalhadores contra o arrocho salarial. Se
pudesse escolher, a burguesia continuaria apoiando sem vacilação as medidas de
exceção.
Muitos
empresários continuaram financiando os órgãos de repressão política, mesmo
quando esses órgãos entraram em rebelião relativamente aberta contra a política
do grupo de Geisel. À burguesia, não faziam mossa as práticas de tortura,
assassinato e desaparecimento de opositores políticos, comunistas ou não,
armados ou pacíficos. Nem a realização de atos terroristas que justificassem o
endurecimento ainda maior do regime. Seu temor era o crescente repúdio dos
trabalhadores e da pequena-burguesia ao regime ditatorial.
A
burguesia supunha que, com a “mão forte” da ditadura, essas classes
continuariam inebriadas pelo “milagre econômico” de 1969 a 1973, e pela crença
de que o bolo seria dividido logo que o país voltasse a crescer. No entanto,
mesmo setores burgueses médios, que sofriam mais diretamente os efeitos da
crise, começavam a abandonar o barco da ditadura e a procurar saídas para o
regime. Mas o máximo que se permitiam era advogar a redução do grau de
arbitrariedade do regime.
Em 1975, o
assassinato de Herzog colocou a “distensão”, assim como as diversas classes
sociais em reestruturação na sociedade brasileira, diante de uma encruzilhada.
Ou o grupo de Geisel desfechava um golpe para valer no sistema repressivo do
regime, ou sua retirada estratégica para salvar as Forças Armadas do opróbio
seria entravada e revertida, possivelmente tornando o país ingovernável. Mesmo
porque a crise econômica se intensificava. A dívida externa se tornara
impagável, recrudesceram os déficits na balança comercial, o custo de vida e a
inflação. E, para horror da burguesia, multiplicavam-se movimentos trabalhistas
e sociais, embora ainda de baixa intensidade.
Em 1976,
apesar da intervenção no II Exército e nos órgãos de repressão, as dissenções
nas Forças Armadas não foram reduzidas. Os setores militares descontentes com a
“distensão” intensificaram suas ações terroristas, incluindo a explosão de
bombas em bancas de jornal, na ABI e na OAB. E o DOI-CODI de São Paulo, em
articulação com a máfia do delegado Fleury, voltou a assassinar oposicionistas.
Matou não só o operário Manoel Fiel Filho, mas também três dirigentes do PCdoB
naquilo que ficou conhecido como “Massacre da Lapa”.
Com
algumas raras exceções, a maior parte da burguesia continuou apoiando a
continuidade da ditadura. Na melhor das hipóteses, alguns de seus representantes
faziam críticas tímidas a aspectos da política econômica e atacavam o
“estatismo”. Laerte Setúbal, um dos principais expoentes do grupo Itaú e da
FIESP, chegou a apoiar o recrudescimento de medidas que lhe garantissem
“segurança” no trato das reivindicações trabalhistas. Na mesma linha atual do
coronel Boggo, afirmou que “todos nós estamos dentro de uma caldeira em que a
pressão já alcança níveis perigosos. E pode explodir em breve, caso não haja
uma definição geral”.
Embora
diante de uma situação que só poderia ser resolvida por métodos democráticos,
mesmo limitados, ganharam supremacia, como notou Rezende, “os representantes do
grande capital nacional que não hesitavam em defender o... fechamento político
como forma de conter as tensões sociais”.
Assim, a
maior parte da burguesia brasileira, fiel à sua particularidade histórica,
jamais reconheceu e aceitou a democracia, mesmo limitada. Sempre preferiu uma
ditadura, “um executivo forte”, principalmente se viesse desnudada de qualquer
estatismo. Isto é algo que não se deve esquecer.
Fonte:
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