Por Frei Betto
Primeiro, mataram Amarildo de Souza. Ajudante de
pedreiro, pai de família, reputação ilibada, caiu em mãos de policiais da UPP
(Unidade de Polícia Pacificadora) da favela da Rocinha, no Rio, e desapareceu.
Sabe-se, hoje, que sofreu espancamentos até a morte
atrás da cabina da Policia Militar, na Rocinha. Seu corpo continua
desaparecido. Paira a suspeita de que teria sido triturado em uma caçamba de
caminhão de lixo.
Agora assassinaram o bailarino Douglas Rafael
Pereira, encontrado morto, com um tiro nas costas, na creche da favela
Pavão-Pavãozinho, na divisa de Copacabana com Ipanema. Testemunhas viram-no em
mãos de policiais militares da UPP local.
Favela não é reduto de bandidos nem a Polícia
Militar uma corporação de assassinos. Moram em favelas famílias trabalhadoras
sem recursos para adquirir um imóvel melhor ou pagar aluguel em áreas urbanizadas,
dotadas de saneamento e vias asfaltadas.
Há, sim, entre os moradores da comunidade, bandidos
e traficantes de drogas, assim como eles também são encontrados em bairros como
o Morumbi de São Paulo e a Barra da Tijuca, no Rio, onde residem famílias de alto
poder aquisitivo.
Nas décadas de 1970-80, a expansão de movimentos
populares no Brasil se estendeu para o interior das favelas. Por razões
pastorais, morei na de Santa Maria, em Vitória, entre 1974 e 1979. Naqueles
cinco anos participei de uma comunidade relativamente bem organizada em torno
do Centro Comunitário. No Rio e em São Paulo multiplicavam-se Associações de
Moradores.
Em fins dos anos 1980 e início da década seguinte,
lideranças comunitárias da periferia começaram a ser cooptadas por prefeitos e
governadores. Como ocorre hoje com a UNE e as centrais sindicais, as entidades
comunitárias perderam credibilidade na medida em que se transformaram em
agentes do poder público junto à população, quando deveriam atuar na direção
inversa.
A acefalia abriu espaço ao narcotráfico, que passou
a monitorar favelas e bairros da periferia. Na ausência de serviços públicos
básicos, o narcotráfico desempenha o papel de assistente social, assegurando
tratamento de saúde, bolsas de estudos, transporte e crédito aos desfavorecidos.
Por sua vez a PM, um resquício da ditadura,
tornou-se, no Rio e em São Paulo, o avatar na guerra contra o narcotráfico. A
ação preventiva deu lugar à mera ação repressiva. Sem preparo pedagógico e
psicológico, policiais militares encaram moradores de favelas como o governo
dos EUA jovens muçulmanos: todos são suspeitos até prova em contrário.
Como declarou um amigo e vizinho de Douglas, os PM
tratam os moradores da favela com arrogância. Muitos não admitem que a pessoa
abordada mire em seus olhos. Sentem prazer sádico em ver o cidadão humilhado,
de cabeça baixa, suplicando por clemência. Achacam o comerciante local, bebem e
comem de graça em bares e lanchonetes da comunidade, recebem propinas do
narcotráfico para fazer vista grossa frente ao crime organizado.
O governo do PMDB no Rio, com apoio do PT,
acreditou ter inventado a roda ao instalar UPPs em áreas de conflitos. Cometeu
duplo erro: por não fazer os serviços públicos acompanhar a entrada de
policiais nas comunidades e por não capacitar os integrantes das UPPs.
A ação repressiva não veio casada com a ação
educativa. Crianças e jovens continuaram sem escolas de qualidade, oficinas de
arte, áreas de lazer e esportes. E por vestirem uma farda e portarem armas, PMs
se arvoram em senhores acima do bem e do mal. Revistam um trabalhador como um
senhor de engenho tratava um escravo em tempos coloniais.
O estranho é que muitos policiais, moradores em
favelas, não se reconhecem em seus amigos de infância e vizinhos, e agem como
se não fossem um deles.
Amarildo e Douglas, como tantos outros anônimos,
foram sacrificados pela prepotência. Quem será a próxima vítima?
Amarildo e Douglas são mortos insepultos. Seus
sacrifícios clamam por um Estado que efetivamente reduza a desigualdade social,
construa mais escolas que prisões, incuta nos policiais o sagrado respeito aos
direitos humanos, e puna com rigor bandidos de colarinho branco e assassinos
fardados.
Se até hoje o Estado brasileiro não obrigou as
Forças Armadas a abrir os arquivos da ditadura nem puniu os torturadores, não é
de se estranhar que policiais se sintam no direito de ignorar a lei e a
cidadania, para agir como se fossem apenas UPPs – Unidades de Policiais
Pervertidos.
Diretoria do Sepe Núcleo Rio das Ostras e Casimiro de Abreu
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