Por Wladimir Pomar
É verdade
que a ditadura implantada em abril de 1964 conseguiu, em seus 21 anos de
duração, fazer a mobilização social retroceder durante os anos 1960 e também
massacrar todas as tentativas de resistência armada. No entanto, uma avaliação
mais apropriada pode deixar claro que tal massacre, assim como a “surpresa”
sobre o golpe, em 1964, ocorreu mais por erros de avaliação da esquerda do que,
como supõe o coronel Boggo, pela “eficiente atuação das forças armadas”.
Cinco anos
após haver participado ativamente do golpe de 1964, o almirante Ernesto Mello
Baptista escreveu uma carta confidencial a seus congêneres, enumerando os
problemas que se tornariam fatídicos para o regime militar. Segundo ele, o povo
estava cada vez mais pobre, e tendia a ficar ainda mais pobre. Em consequência,
o desespero e o desânimo levariam a uma pré-guerra revolucionária. Além disso,
havia um número crescente de falências e concordatas e a transferência do
controle acionário de grupos nacionais para estrangeiros, afetando a soberania
nacional. E era absurdo considerar como não natural e ilegítima a insatisfação
dos estudantes, dos trabalhadores e dos cientistas e políticos contra a
liberdade de expressão e organização, o arrocho salarial, a eliminação de seus
quadros e a transformação dos problemas políticos em problemas exclusivamente
militares. Tudo isso levaria o regime a um buraco sem fundo.
O fato de
o povo estar cada vez mais pobre chegou a ser reconhecido pelo ditador Médici.
Mas este, da mesma forma que 50 nos depois o coronel Gobbo, não reconheceu os
demais problemas estruturais apontados pelo almirante. Seguindo a estratégia
estabelecida pela Escola Superior de Guerra, os mentores da ditadura
acreditavam obter a adesão do conjunto da sociedade através do crescimento
econômico e do trabalho persistente em torno da valorização daqueles aspectos
psicossociais que supunham fazer parte da cultura histórica do país. No manual
daquela escola, as classes e a luta de classes eram aberrações sociológicas.
Para
contrapor-se a tais aberrações deveriam ser estimulados os laços familiares, a
disciplina social, a religião e a correção dos costumes. A retidão dos
militares deveria ser tomada como exemplo. Toda a teoria da Escola Superior de
Guerra, conforme frisou Maria José de Rezende, tinha como objetivo doutrinar a
população de que os métodos, ações, medidas, objetivos e desígnios do regime se
consubstanciavam com os anseios da grande maioria. O Brasil possuiria os
requisitos para chegar a grande potência, mas lhe faltaria governantes com
capacidade de planejamento e execução. Frente a isso, somente uma democracia
disciplinada, tendo à frente os militares, seria capaz de inovar o país.
Os
militares, conforme proclamou o general Etchegoyen, estariam determinados a
“consertar” o país na “marra”, em “quarenta anos, cinquenta anos, cem anos”. Em
tais condições, como frisa Rezende, “a liberdade era, de maneira geral,
angulada pela perspectiva militar. E esta “só seria possível se vinculada à
ordem e à disciplina”. O “ideário de democracia” do regime militar abolia o
espaço da política. Portanto, como alertara o almirante Mello Baptista, teria
que partir para a eliminação dos quadros políticos, mesmo conservadores e
liberais. Em sua arrogância, tal regime pensava poder transformar a política em
assunto estritamente militar, o contrário do que predicavam os clássicos da
arte militar, Sun Tsu e Clausewitz.
Porém, na
prática, ao tratarem com o poder econômico, os militares se confrontaram com a
realidade das classes, em especial da plutocracia burguesa. Embora tenham
estruturado, em todos os ministérios, as Divisões de Segurança e Informação
para realizar o controle militar, não puderam prescindir da “tecnoburocracia
civil” que, segundo Rezende, “possuía em seu quadro tanto representantes
diretos do grande capital (Mário H. Simonsen, Marcos V. Pratini de Moraes etc.)
quanto outros atores sociais que participavam dos mecanismos decisórios”. Além
disso, “os representantes do grande capital que possuíam posições de poder...
se utilizavam de diversos canais políticos para fazer prevalecer seus valores e
interesses”.
Apesar
disso, desde abril de 1964, setores empresariais se mostraram preocupados com
os rumos do regime, que tendia a excluir alguns segmentos que haviam dado amplo
apoio ao golpe. Os latifundiários, por exemplo, ficaram temerosos e ameaçaram
rebelar-se contra o Estatuto da Terra. Só amainaram quando se deram conta de
que o Banco do Brasil fora autorizado a financiar amplamente a produção
agropecuária e transformá-la num sistema empresarial e comercial. O que
correspondia plenamente aos interesses do grande capital industrial,
estrangeiro e nacional. Este capital poderia contar com um vasto exército de
trabalho, através da libertação dos camponeses das peias do latifúndio e de seu
êxodo para as cidades industriais.
Paralelamente
a isso, embora parte da antiga burguesia estivesse sendo penalizada pela
política que beneficiava apenas o grande capital, toda ela se deliciava com a
disciplina do trabalho que impunha a proibição prática das greves e de
manifestações sociais de qualquer tipo que ameaçassem a produtividade da
propriedade privada. Portanto, desde o início, apesar das preocupações
pontuais, o sistema da “revolução redentora”, que se investira de Poder
Constituinte, não passou de um regime ditatorial a serviço da plutocracia
burguesa, estrangeira e nacional.
Nos seus
primeiros quatro anos, destruiu aquela parcela da burguesia que tinha baixa
produtividade, ou resistia associar-se ou subordinar-se ao capital externo, a
exemplo da Panair. Ao mesmo tempo, iniciou a profunda transformação da maior
parte do latifúndio em capitalismo agrícola, e da maior parte dos
latifundiários numa fração da burguesia. E impôs ao campesinato o maior
movimento migratório da história brasileira, fazendo com que milhões de antigos
agregados se transferissem para as zonas urbanas industriais e para as novas
fronteiras agrícolas.
A ditadura
criou, assim, uma nova classe de trabalhadores assalariados urbanos e rurais e
uma enorme fração de camponeses posseiros. Desse modo, batalhou o tempo todo,
como diz Rezende, “para construir sua aceitabilidade, atestando que o regime em
curso era sinônimo de governo do povo, não de elite e/ou de competição entre
elites”. Porém, antes do que esperava, viu emergir as contradições daquelas
classes com o grande capital e com o monopólio da terra. Ou seja, não conseguiu
escapar da sina do desenvolvimento capitalista real. Por um lado, construiu as
condições para o “milagre econômico”, entre 1968 e 1973. Por outro, mergulhou o
país na estagnação e na crise, entre 1974 e 1985, e gerou as condições de sua
própria derrota.
No período
do “milagre”, a ditadura garantiu todos os benefícios para a plutocracia
burguesa, aquela elite estrangeira e nacional que ainda hoje domina os meios
econômicos de produção, circulação e distribuição. O crescimento da economia,
proporcionado pelos investimentos de capitais estrangeiros e nacionais, assim
como das estatais, permitiu que esses capitais obtivessem, através do arrocho
salarial e do sufocamento da luta trabalhista, lucros extraordinários.
O que lhes
possibilitou distribuir migalhas que contentaram momentaneamente setores da
pequena-burguesia proprietária e não-proprietária, e as fizeram acreditar na “atuação
eficiente” da ditadura. Mas a chuva de verão do “milagre” foi seguida de um
grande período de “seca” de capitais e investimentos. Período que se agravou e
prolongou pela “sangria” da dívida externa e da devastação neoliberal. A
“eficiente atuação” militar-ditatorial se esvaiu por todos os poros dos poderes
elencados pela Escola Superior de Guerra: econômico, político, militar e
psicossocial.
Na
economia, a ditadura não mais conseguiu atender às demandas da plutocracia
burguesa, deixando vir à tona choques e conflitos relacionados com a
monopolização e a centralização da economia, com a divisão dos lucros e com as
relações externas. Na política, a ditadura empurrou para a oposição, às vezes
violentamente, setores liberais e conservadores que haviam apoiado o golpe e
que haviam se mantido relativamente fiéis, mas não encontravam espaço para
discutir suas demandas. Na área militar, com a ação do “sistema” autônomo de
informação, captura, tortura, assassinato e desaparecimento, ela instalou a
anarquia nos quartéis. Nem mesmo os generais se sentiam a salvo quando ficou
evidente que a “disciplina militar”, que lhe dera o pretexto para o golpe, fora
jogada na latrina do SNI, dos DOI-CODIs e de seus centros clandestinos de
tortura.
Quanto ao
poder psicossocial da ditadura, as eleições de 1974 foram a primeira
demonstração de que ele não mais funcionava. Como vaticinara o almirante Mello
Baptista, a ditadura chegara ao ápice de seus dilemas. Os militares podiam
realizar uma retirada estratégica ordenada, para salvar as forças armadas do
descrédito total, mesmo havendo derrotado os movimentos guerrilheiros. Ou
podiam deixar o “sistema” repressor e sanguinário continuar tomando as
decisões. Isto fatalmente faria com que as forças armadas perdessem qualquer
condição de recuperar sua credibilidade e colocariam o Brasil diante de total
imprevisibilidade quanto a seu futuro econômico, social, político e cultural.
O coronel
Boggo, antes de escrever sobre os 10 anos de “desconstrução” do Brasil pelo PT,
poderia ter descrito o Brasil que a ditadura militar e o neoliberalismo
devastaram, para simples efeito comparativo.
Fonte:
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