Passada uma semana da perda de Gabriel García
Márquez, uma das mais icônicas e significativas figuras do universo cultural
latino-americano, surge um momento para parar e refletir sobre como, em sua
obra e vida, García Márquez incorporou algumas das ambiguidades que marcam o
nosso continente.
García Márquez sempre foi um notório amante desse
continente. Não com um amor cego, mas com um amor capaz de enxergar a América
Latina como ela é, em todas as suas matizes e contradições: em sua glória e
suas limitações, suas virtudes e seus vícios, sua alegria e sua profunda
melancolia e tristeza, seu amor e sua violência. Esse amor era não apenas
realista, mas também mágico. Ao reimaginar as histórias de seus parentes,
amigos, e de figuras reais ou fictícias do seu mundo García Márquez não apenas
traça um retrato da vida nas pequenas cidades latino-americanas mas lhes
imprime qualidades mágicas que ressoam com a experiência humana em geral. E foi
isso que permitiu a criação de uma literatura de repercussão universal.
Mas, para além da literatura, García Márquez
incorporou a ambiguidade da América Latina em sua própria vida. Isso fica
evidente, principalmente quando pensamos sobre as formas de seu envolvimento
com o mundo da política.
Tomemos como exemplo o conhecido caso Padilla. Em
1968, o escritor cubano Heberto Padilla publicou o livro de poemas Fuera del
Juego, que lhe rendeu o primeiro lugar no Prêmio Nacional de Poesia de Cuba e a
prisão, em 1971, por suas ideias contrarrevolucionárias. Encarcerado e
torturado por 38 dias, Padilla pronunciou um discurso na ocasião de sua
libertação em que publicamente se retratou com o regime a celebrou sem
ambiguidades as glórias da revolução. O episódio deixou profundas marcas
emocionais no escritor, que faleceu nos EUA, em 2000.
O caso também se tornou notório porque a libertação
de Padilla foi em parte resultado de uma carta de denúncia e repúdio assinada
por cerca de 60 artistas e escritores, incluindo referências da literatura
latino-americana, como Mario Vargas Llosa e Julio Cortázar, e intelectuais
internacionais de peso, como Marguerite Duras e Jean-Paul Sartre.
A notória recusa de García Márquez a assinar o
manifesto criaria uma mancha indelével em sua reputação. Principalmente porque
foi seguida de uma progressiva e firme aproximação entre o escritor e Fidel
Castro. Os dois momentos foram naturalmente associados na mente de muitos
críticos.
A amizade entre García Márquez e Fidel Castro se
estendeu ao longo dos anos. O escritor recebeu inúmeros privilégios do Governo
Cubano. Em pronunciamentos públicos muitas vezes ele se mostrou nuançado
(alguns diriam ambíguo) em relação aos aspectos positivos e negativos do regime
de Fidel. Para alguns, isso representava uma capacidade diplomática que
permitiria a García Márquez uma participação e influência reais nos processos
políticos em Cuba (ele teria inclusive sido responsável pela concessão do visto
que permitiu que Padilla imigrasse para os EUA em 1980).
Para outros, representaria a simples capitulação
com o poder. Apenas mais uma instância da fixação latino-americana por títulos,
pompas, honrarias e cultos à personalidade que tornam esse continente um solo
tão fértil ao populismo e às ditaduras. Muito já se escreveu sobre as complexas
relações de García Márquez com o poder. E ainda há muito a ser dito. Entender
essas relações nos ajuda a ver de onde vem a cor e o tom que fazem a América
Latina ser o que é hoje.
*Rodrigo
Franklin de Sousa é Doutor em Letras pela University of Cambridge (Reino Unido
- 2008). Possui graduação em Letras pela Universidade Federal de Campina Grande
- antiga UFPB - Campus II (2000), e formação em Teologia (M.Div.) pelo Covenant
Theological Seminary (EUA - 2004). Atualmente é professor e coordenador
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências da Religião no Centro de
Educação, Filosofia e Teologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie. É
Colaborador Externo no programa de pós-graduação em Teologia (mestrado e
doutorado) da North-West University (África do Sul).
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