Por Valério Arcary
Corremos alegres para o precipício, quando pomos pela frente algo que nos impeça de o ver (1).
Blaise Pascal
Durante a manifestação de abril de 1917 uma parte dos bolcheviques lançou a palavra de ordem: “Abaixo o governo provisório”. O Comitê Central logo chamou à ordem os ultraesquerdistas. Devemos, é claro, propagar a necessidade de derrubar o governo provisório, mas não podemos ainda chamar as massas às ruas por essa palavra de ordem, pois estamos ainda em minoria na classe operária. Se, nessas condições, conseguimos derrubar o governo provisório, não o poderemos substituir e, por conseguinte, auxiliaremos a contrarrevolução (2).
Leon Trotsky
Quando se trata da história do tempo presente, não encontraremos nunca interpretações definitivas, apenas explicações que diminuem as margens de erro, que reduzem os inevitáveis impressionismos, ou seja, se superam. Assim avança o conhecimento.
Uma das curiosidades dos debates provocados pelas manifestações do domingo, dia 15 de março, foi um inusitado acordo de análise entre alguns dos mais ardorosos defensores da oposição de direita e alguns dos mais inteligentes defensores críticos do governo: março de 2015 teria raízes e seria de alguma maneira uma continuidade de junho de 2013 (3).
Mas esta análise é uma ilusão de ótica do relógio da história. Junho de 2013 foi o contrário de março de 2015. Não foi somente mais jovem e, socialmente, mais proletário (4). Os protestos de junho de 2013 foram em defesa de transportes, educação e saúde pública. Dia 15 de março, a maioria era de apoio a mais privatizações. A multidão pulava e gritava “nossa bandeira jamais será vermelha”.
Junho de 2013 foi contra todos os governos. Os protestos, depois do dia 13 de junho, foram acéfalos, sem direção. As manifestações de março de 2015 foram, politicamente, só contra o governo de Dilma Rousseff, e com direção claríssima. A nova direita, e até a extrema-direita, com apoio dos partidos eleitorais da direita institucional. Esta diferença é qualitativa. Portanto, se considerarmos o programa do dia 15/03, a composição social de quem foi às manifestações e a sua direção, três fatores chaves, não há razões para muitas dúvidas.
Junho de 2013 foi progressivo e herdeiro do Fora Collor de 1992. Quem se posiciona na continuidade de 2013 são as greves dos trabalhadores. Como a resistência operária contra as demissões nas montadoras. Como a greve dos professores do Paraná que encurralou Beto Richa e, nas duas últimas semanas, a dos professores de São Paulo.
Março de 2015 foi reacionário, e herdeiro da polarização da campanha eleitoral de 2014, um dos processos eleitorais mais demagógicos da história do Brasil. O impeachment de Dilma, na atual correlação de forças, seria uma solução reacionária porque abriria, necessariamente, uma situação pior para a resistência dos trabalhadores. Os inimigos de nossos inimigos não são nossos amigos. Não há somente dois campos no Brasil. Há uma disputa entre dois campos burgueses, e uma oposição de esquerda que, embora minoritária, é a única que representa o campo dos trabalhadores.
Março de 2015 foi reacionário pelo seu programa e direção. Não porque aqueles que foram às ruas fossem fascistas – que os há, evidentemente, mas eram uma minoria. E mesmo a caracterização de “massas de direita” precisa ser relativizada. Que a maioria dos que saíram às ruas tivessem a camisa amarela da seleção, uma forma simples de identidade nacional, não deve alimentar hipocondria política. Ou Alzheimer: nas Diretas Já o amarelo foi a cor das manifestações, e motivou um lindo samba do Chico Buarque (5).
No Brasil, autodefinições de tipo ideológico, como direita e esquerda, fazem ainda pouco sentido para a imensa maioria da população. Temos pouca tradição de organização política, quando comparados com, por exemplo, sociedades vizinhas como Uruguai e Argentina. O pertencimento é definido por outras experiências: região de origem, identidades variadas e, sobretudo, condição de classe (6).
Os protestos de junho de 2013 foram uma luta em processo, uma disputa, uma aposta e, como sempre em qualquer combate, reinou, enquanto se desenvolvia a incerteza do seu desenlace. Os grandes momentos na luta de classes não podem ser analisados, somente, pelo desenlace final. Ou pelos seus resultados. Estes explicam, facilmente, mais sobre a reação que os derrotou. Na história não se pode explicar o que aconteceu considerando somente o desfecho. Isso é anacrônico. O fim de um processo não o explica. Na verdade, o contrário é muito mais verdadeiro. O futuro não decifra o passado, apenas o reinterpreta.
É uma armadilha da mente imaginar que há desenvolvimento linear de processos, e procurar sempre raízes de fatos recentes em acontecimentos passados, sem perceber o perigo da inversão do significado. Embora tentador, este viés é sempre arriscado. Porque nas nossas vidas, na natureza e na história das sociedades, fases de evolução lineares, mais ou menos constantes, dão lugar a fases de aceleradas transformações.
Junho de 2013 não explica março de 2015, mas a campanha eleitoral de 2014 ajuda muito a compreendê-lo. Entre o segundo turno de 2014 e o passado dia 15 de março, aconteceu o que era previsível: o governo de coalizão liderado pelo PT aceitou a orientação de Lula e, assustado pela pressão burguesa nacional e internacional pelo ajuste fiscal, cedeu. Dilma, “coração valente”, abandonou, olimpicamente, as promessas eleitorais e assumiu o programa do PSDB de Aécio Neves. Sucessivos estelionatos eleitorais têm consequências.
A crise política deslocou para a oposição a maioria da população. As pesquisas de opinião se sucedem e confirmam que a aprovação do governo Dilma desmorona, vertiginosamente. Quase 60% apoiam o impeachment (7).
No entanto, pesquisa realizada pela FPA (Fundação Perseu Abramo) confirma que, na Paulista, no dia 15, esteve presente, sobretudo, uma maioria assalariada com alta escolaridade (8). Quem são, socialmente, os manifestantes do dia 15/03? Os números revelados pela pesquisa são esmagadores. Entre aqueles que se autodefiniram como empregadores, empreendedores e profissionais liberais, eram 24% dos presentes, e mais de 40% admitiram uma renda mensal igual ou superior a 10 salários mínimos, quando a proporção com este rendimento no universo da cidade é menor que 10% da população.
A luta contra a corrupção não é reacionária. É progressiva. Mas uma luta progressiva não significa que justifica uma unidade na ação entre a oposição de esquerda e a oposição de direita. As manifestações do dia 15, convocados pela nova direita Movimento Brasil Livre e pelo Vem pra Rua, mas também pelo Revoltados on line, de extrema-direita, foram reacionárias. Mas não porque as pessoas que lá estiveram se mobilizaram contra a corrupção. Tanto a luta pelas Diretas, em 1984, quanto pelo Fora Collor, em 1992, tiveram como um dos seus combustíveis centrais a luta contra a corrupção. Mas porque o seu eixo foi a derrubada de Dilma (9).
Quem avalia que a corrupção não tem solução não defende uma posição madura, mas cética e cínica. O que não significa ter uma ilusão ingênua nas instituições de controle: CGU, TCU, CADE, MP (Ministério Público); pior ainda na Justiça Federal. Tampouco merece qualquer expectativa uma reforma política que venha a ter como espaço de elaboração o atual Congresso Nacional.
Isto posto, não responde ao problema de análise do dia 15/03 recuperar a velha tese de que “a classe média tradicional tem horror à ascensão social dos pobres” (10). Um argumento mais forte para a compreensão do apelo da nova direita parece ser a maior influência de ideias liberais – “estatais são sempre menos eficientes e mais corruptas que empresas privadas”, por exemplo. Subestimar o impacto da operação Lava Jato é um grave erro de análise na percepção do que foi o dia 15 de março.
A denúncia e o combate contra a corrupção são um tema importante da luta pela revolução brasileira, uma revolução que tem um programa democrático que não se resume à defesa da reforma agrária e da libertação nacional. Claro que a ilusão de o problema do Brasil ser a corrupção é falsa. A corrupção é um câncer, mas é preciso ter sentido das proporções. O maior problema do Brasil é a exploração capitalista. É a pobreza, a desigualdade social, a ignorância. São todos produtos do capitalismo. A única saída é anticapitalista
A vida demonstrou, porém, o quanto estavam errados aqueles que defenderam a incrível tática de participação da esquerda no passado dia 15/03 (11). Nosso lugar é nas ruas, mas sob outra bandeira. Por isso é tão importante cercar de apoio as lutas em curso, a começar pelas greves de professores em vários estados. Neles, e com eles, a esperança de junho de 2013 volta a viver.
Notas:
2) TROTSKY, Leon. Revolução e contrarrevolução na Alemanha. São Paulo: Editora José Luís e Rosa Sundermann, 2011. P. 78.
4) André Singer é representativo daqueles que se situam no campo do governo com uma posição crítica. Disponível em:
Consulta em 28/10/2013.
5) A canção se chama Pelas Tabelas, de 1984. Disponível em:
Consulta 25/03/2015
6) Mudam os critérios para aferição do significado de direita, centro e esquerda? Sim, mudam. Direita e esquerda são uma classificação de tipo histórica. Direita e esquerda são critérios que surgiram no século XVIII, no calor da revolução democrática. Quando da revolução francesa, direita eram aqueles que defendiam o Antigo Regime, e esquerda aqueles que queriam derrotá-lo. O conteúdo desta classificação, no século XXI, deve remeter aos antagonismos do presente.
Porque as pessoas não se definem, prioritariamente, pela força dos argumentos, e sim pela força dos interesses. Para o marxismo, o campo da esquerda é o do movimento proletário em sua luta contra a propriedade privada. Quem reconhece a legitimidade da luta da classe trabalhadora é de esquerda. Pode se posicionar ou porque é assalariado, ou porque simpatiza com a luta da classe operária. Ser de direita é abraçar um posicionamento que reconhece a legitimidade da riqueza, e defende a propriedade privada dos grandes meios de produção e, portanto, do capital. Direita é quem considera, portanto, se não natural, pelo menos inevitável, ou até desejável, a desigualdade social. Bobbio, um liberal, redefiniu os conceitos tendo como critério, por exemplo, a importância da luta pela igualdade social. Este ou outros critérios são, por suposto, instigantes, todavia, controversos. O livro de Norberto Bobbio,Direita e esquerda, razões e significados de uma distinção política, pode ser encontrado em: www.libertarianismo.org/livros/nbdee.pdf Consulta 25/03/2015.
8) Dados disponíveis
Consulta em 22/03/2015.
10) SINGER, André. Entrevista à Folha de são Paulo, 22/03/2015. Dados disponíveis
Consulta em 22/03/2015.
11) O MNN (Negação da Negação), ou Território Livre, posicionou-se pelo apoio ao dia 15/03 em carta dirigida ao PSOL e ao PSTU: “os dias 13 e 15 não podem ser equiparados. Em vez de equipará-los e propor uma terceira via, mais proveitoso seria, nos parece, engrossar atos como o do dia 15 com setores organizados da classe trabalhadora”.
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