Por Marcelo Barros
Apesar de não constar no rol oficial dos santos da
Igreja, desde o século XVIII, o povo do Rio Grande do Sul canonizou Sepé
Tiarajú, cacique guarani. Em 1756, esse índio deu a vida por seu povo e para
que a terra pudesse ser comum a todos. Em reconhecimento do seu martírio, o
povo da região deu o nome de São Sepé a uma cidade da região central do Rio
Grande do Sul. Em 2009, um decreto do presidente da República inscreveu o nome
de Sepé Tiaraju no Livro dos Heróis da Pátria.
A história conta que, até 1756, toda a região
compreendida pelos atuais estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul
pertencia à Espanha. Ali os jesuítas acolhiam os índios Guarani para impedir
que fossem caçados e escravizados pelos brancos. Os jesuítas batizavam os
índios para torna-los cidadãos do império e assim protegê-los da escravidão.
Ali viviam mais de um milhão de Guarani. A língua do território era indígena e
o poder era exercido comunitariamente. As missões obedeciam a um modelo de
Cristandade conquistadora. Eram colonialistas porque, de certa forma, obrigavam
os índios a viverem como cristãos brancos. Entretanto, apesar disso, nas
aldeias dos sete povos, os índios reproduziam muito de sua cultura. Falavam seu
idioma nativo e desenvolviam artes como arquitetura e música, na qual eram
exímios artistas. Voltaire, intelectual francês do século XVIII, inimigo jurado
da Igreja e principalmente dos jesuítas, escreveu: "A experiência das
missões Guarani representa um verdadeiro triunfo da humanidade e uma das mais
belas experiências sociais já realizadas” (Cf. Clovis Lugon, A República cristã
comunista dos Guaranis, Paz e Terra, 1968).
Como a experiência comunitária dos Sete Povos da
Missão era uma ameaça para a ambição dos impérios europeus, os reis de Portugal
e Espanha se aliaram e assinaram o Tratado de Madri (1750). Através desse
acordo, o rei de Portugal deu de presente à Espanha a Colônia do Sacramento,
atual Uruguai e recebeu do rei espanhol o território dos Sete Povos da Missão.
No entanto, o tratado exigia que os jesuítas fossem expulsos da região e as
aldeias da missão destruídas. Os índios se negaram a abandonar suas terras,
suas lavouras e um gado estimado em dois milhões de cabeça. As aldeias
construídas como verdadeiras cidades, com Igreja, praça, padaria, salão de
música e escola eram mais adiantadas do que muitas cidades europeias da época.
O cacique Sepé Tiaraju comandou a resistência dos índios contra os dois
exércitos imperiais reunidos. Ele dizia: "Esta terra, nós a recebemos de
Deus e não podemos deixá-la”. Sepé tombou em combate no dia 07 de fevereiro de
1756 em Batovi, hoje São Gabriel (RS). Três dias depois, em Caiboaté, os
exércitos de Portugal e Espanha trucidaram os últimos índios e obrigaram
crianças e mulheres sobreviventes a atravessar o rio Uruguai e se dispersar
pelas florestas e campos sem fim.
Apesar de que os acontecimentos da vida de São Sepé
e das missões dos sete povos fazem mais de 250 anos, alguns fatos de hoje
parecem lembrar aquela tragédia, mostrada no filme "A Missão” de Roland
Joffé, em 1986. Ainda hoje, a maioria dos povos indígenas no Brasil não tem
garantida a demarcação de suas terras e o respeito à autonomia de suas
culturas. No Brasil de hoje, o agronegócio da soja e os grandes projetos de
hidroelétricas e estradas que invadem os territórios indígenas, além dos
grandes prejuízos que causam à natureza, expulsam comunidades indígenas e
ameaçam a própria existência dos povos indígenas, tanto na Amazônia, como no
Pará, Mato Grosso do Sul e em todo o Brasil. Nesse contexto, retomar nesses
dias a memória de São Sepé Tiaraju é uma forma de recordar a tantos índios e
índias que ainda hoje arriscam a vida para que os povos autóctones deste
continente possam viver livres e em sua terra. Quem vive um caminho de busca
espiritual sente-se interpelado à solidariedade com os povos indígenas, fonte
de sabedoria e de espiritualidade ecológica para toda humanidade. Em uma de
suas mensagens de Natal, Dom Pedro Casaldáliga escrevia: "O Verbo se fez
índio e habitou entre nós”.
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