Por José Benedito Pires
Trindade e Otto Filgueiras*
Como é de uso em circunstâncias semelhantes, a
morte do cinegrafista Santiago Andrade desatou torrentes, caudais
incontroláveis de textos e palavras. Jornalistas, intelectuais (não que os
primeiros não sejam...) políticos, blogueiros, analistas e especialistas (quê
seriam?), situados à esquerda ou à direita, mais uma vez convergiram em defesa
"do Estado Democrático de Direito” (existe algum Estado Democrático que
não seja de Direito?).
Não há como se pôr indiferente à morte do
cinegrafista. O corte definitivo, irreparável, da curta vida de Santiago
Andrade comove. No entanto, há um esforço fortíssimo para embaraçar esse
sentimento, à medida que o assassinato serve de bandeira para desclassificar
manifestações e manifestantes. E, pior ainda, para quebrar as resistências e
acelerar, no Senado, a aprovação de uma lei genérica, propositadamente
elástica, de multiuso – que tipifica o crime de terrorismo.
A jornalista Niara de Oliveira, em contraponto a
texto do jornalista Mário Magalhães, faz um breve relato, coleciona algumas
notícias sobre o "Estado Democrático de Direito” em que vivemos, cuja
defesa radical aproxima lado e outro do dito espectro político nacional.
Poderia acrescentar mais algumas informações, para enriquecer a molduragem da
realidade em que se deu a morte do cinegrafista.
A morte de Santiago Andrade será um dos 50 mil
assassinatos que haverá no país, até dezembro, parte significativa deles de
autoria das PMs; outros 50 mil brasileiros morrerão no trânsito, boa quantidade
dos quais trabalhadores, atropelados.
Até o final do ano, mais de 50 mil trabalhadores
serão vítimas de gravíssimos acidentes de trabalho; três mil vão morrer e
outros milhares restarão mutilados. Esses números dão ao Brasil o quarto lugar
em acidentes de trabalho, no mundo. Os acidentes e as doenças de trabalho
custam ao país, anualmente, mais de 70 bilhões de reais. Grande parte desses
acidentes seria evitável, se adotadas medidas preventivas.
Cinco mil clãs brasileiros (não mais que 20 mil
pessoas) apropriam-se de 45% de toda riqueza e renda nacional; o restante é
distribuído entre 51 milhões de famílias (ou 200 milhões de pessoas).
A diferença entre o maior e o menor salário pago no
Brasil atinge duas mil vezes.
O Brasil é vice-campeão mundial em concentração de
terras: cerca de um por cento dos proprietários rurais detém 46% de todas as
terras, enquanto 4,8 milhões de famílias de trabalhadores sem-terra, parceiros,
meeiros e posseiros vivem em propriedades com menos de cinco hectares.
Os assalariados brasileiros pagam mais
impostossobre a renda(!!!!!!!) que os ricos; os pequenos empresários pagam mais
impostos que os bancos e o capital especulativo.
Entre 2010 e 2012, as grandes empresas brasileiras
doaram aos partidos políticos (quais fossem, em que arco situassem) mais de
quatro bilhões de reais; issodeclaradamente; as doações viacaixa dois, como é
óbvio, costumam ser infinitamente maiores.
Os ricos brasileiros acumulam em paraísos fiscais
mais de um trilhão de reais, fazendo de nosso país um dos líderes mundiais em
evasão de rendas, de divisas, de impostos e de lavagem de dinheiro.
Há mais de 19 anos tramita no Congresso Nacional a
PEC do Trabalho Escravo; a PEC das Domésticas que, por incrível que pareça, se
vangloria de equiparar os trabalhadores domésticos aos outros trabalhadores,
depois de longuíssima tramitação, depende ainda de regulamentação.
Esse é o Estado Democrático de Direito que defendem
e querem preservar?
Para o usufruto de quem?
Estado Democrático de Direito não é uma abstração
jurídica, uma entidade incorpórea, uma realidade impalpável, vaporosa. Muito
menos as declarações de intenção, as belas palavras da Constituição, a generosidade
das leis podem servir de premissa para sustentar que vivemos em um Estado
Democrático de Direito.
Sequer a tal da liberdade de imprensa, que alguns,
afoitamente, viram ofendida com o assassinato do cinegrafista, pode ser
invocada como testemunha de que vivemos em um Estado Democrático de Direito. O
açambarcamento dos meios por pequeno número de empresas que, somadas, dominam a
comunicação no país desmente e anula a existência de plena liberdade de
imprensa no país.
Não há como esquecer: as primeiras manifestações
populares, em junho, foram recebidas pela mídia empresarial e pela oposição,
que é liderada por ela, com furibundos, espumantes editoriais, condenando-as. A
extensão dos protestos e a possibilidade de manipulá-los contra o governo, os
partidos, os sindicatos e a esquerda produziu o famoso efeito "Jabor”, uma
mudança acrobática de posições.
Sustentar que vivemos em um Estado Democrático de
Direito é ser conivente com a existência de um Brasil violentamente,
abismalmente desigual, cruel, violento, injusto.
Não pretendemos com essa argumentação absolver,
relativizar ou atenuar a responsabilidade dos que mataram Santiago Andrade. Foi
um assassinato e como tal deve ser tratado e julgado. Até mesmo para
homenageá-lo, para manifestar a nossa solidariedade à família é que não podemos
esconder em que país vivemos.
Os protestos precisam continuar, e nem sempre serão
pacíficos. Mas precisam continuar. A violência da barbárie capitalista não
cessará a não ser com uma revolução popular. No entanto, o povo nas ruas
precisa evitar e combater os equívocos do voluntarismo, da tentação
militarista, do engodo foquista, das ações individuais, da violência
individual. Mesmo porque esse é o terreno preferido dos provocadores, dos
agentes policiais infiltrados, dos marginais e criminosos.
(*) José
Benedito Pires Trindade e Otto Filgueiras são jornalistas; Otto está lançando o
livro Revolucionários sem rosto: uma história da Ação Popular.
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