"O cavalo morto”
VI A NÉVOA da madrugada
deslizar seus gestos de prata,
mover densidades de opala
naquele pórtico de sono.
Na fronteira havia um cavalo morto.
Grãos de cristal rolavam pelo
seu flanco nítido; e algum vento
torcia-lhes as crinas, pequeno,
leve arabesco, triste adorno,
- e movia a cauda ao cavalo morto.
As estrelas ainda viviam
e ainda não eram nascidas
ah ! as flores daquele dia ...
- mas era um canteiro o seu corpo:
um jardim de lírios, o cavalo morto.
Muitos viajantes contemplaram
a fluida música, a orvalhada
das grandes moscas de esmeralda
chegando em rumoroso jorro.
Adernava triste, o cavalo morto.
E viam-se uns cavalos vivos,
altos como esbeltos navios,
galopando nos ares finos,
com felizes perfis de sonho.
Branco e verde via-se o cavalo morto,
no campo enorme e sem recurso,
- e devagar girava o mundo
entre as suas pestanas, turvo
como em luas de espelho roxo.
Dava sol nos dentes do cavalo morto.
Mas todos tinham muita pressa,
e não sentiram como a terra
procurava, de légua em légua,
o ágil, o imenso, o etéreo sopro
que faltava àquele arcabouço.
Tão pesado, o peito do cavalo morto!
Fonte: Meireles, Cecília. Obra poética. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983, pp. 360/361
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