terça-feira, 5 de maio de 2015

Cartografia do corpo



Por Frei Betto

O corpo humano é uma redescoberta recente. Em culturas que precedem o século XX, o corpo era camuflado pela roupa, o moralismo e a religião. Exceções feitas às culturas indígenas, que ainda hoje imprimem respeitosa visibilidade ao corpo. E também à cultura greco-romana, isenta de moralismo antes do advento do cristianismo, como o descreve Marguerite Yourcenar no romance "Memórias de Adriano”.

A tradição bíblica não separava corpo e espírito. A cultura ocidental, marcada pela filosofia de Platão, cinde o ser humano em dois polos antagônicos. Corpo e espírito são inimigos. E há que escolher um. Os devassos escolhem o corpo, destinado às chamas do inferno. Os santos, o espírito, elevado aos céus...

Freud e a física quântica são contemporâneos. Ensinaram-nos que não há corpo como mero receptáculo da alma. Tudo está intrinsecamente ligado. Somos todos uma montanha de átomos, base de nossas células, nos quais há mais espaços vazios que substância material. Nossa "alma” está tanto na unha cortada quanto no fio de cabelo.

O século XX desnudou o corpo, embora desde o Renascimento ele tenha sido exaltado, como exemplifica a pintura de Michelangelo, "A criação de Adão”, no teto da Capela Sistina.

Agora, apropriado pelo capitalismo, o corpo é mercadoria submetida à ditatorial cartografia. Sofre quem não tem o corpo adequado a esta cartografia exposta em capas de revistas, na publicidade ("Vai verão...”), em filmes, fotos e novelas.

Uma poderosa indústria, que se estende de academias de ginástica a medicamentos e dietas miraculosos, fomenta a visibilidade do corpo ideal e penaliza os corpos que não se enquadram no modelo padrão.

Não se trata apenas de uma estética imposta a ferro e fogo, e que induz à depressão quem dela destoa. Trata-se também de uma inversão de Platão. Agora o corpo se salva, e o espírito desce aos infernos. Entre ser burra ou loura, a opção é óbvia.

Quem dera nossas cidades tivessem tantas livrarias e bibliotecas quanto academias de ginástica! Essa exacerbação física aprofunda a cisão entre espírito e corpo. O desempenho sexual torna-se mais importante que a densidade amorosa. A velhice assumida é socialmente execrada. O excesso de peso, ridicularizado.

O corpo, apropriado pelo sistema, já não nos pertence. O mercado determina qual o corpo socialmente apreciado e qual o excluído do mercado e, portanto, condenado ao banimento e à tortura psicológica.

Já não somos o nosso corpo. Somos a encarnação do corpo sacramentado pelo sistema, impelidos a jejuar, malhar bastante, submeter-nos à cirurgia plástica. Nada de nos apresentar sem o corpo-senha que abre as portas do mundo encantado da jovial esbelteza, no qual nossa cartografia física deve suscitar admiração e inveja.

Convém manter a boca fechada, não apenas para evitar engordar. Também para que não descubram que somos desnutridos de ideais, valores e espiritualidade. Estamos condenados a ser apenas um pedaço de carne ambulante.



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