Por Wladimir Pomar
O citado coronel Boggo tem a vantagem de falar com franqueza sobre a ausência das “qualidades inatas” dos pobres. Estes, alfabetizados ou analfabetos, não possuiriam discernimento para escolher a “elite” como governante do país. Em tais condições, segundo ele, qualquer sistema democrático tenderia a seguir a “saga comunista”, “atravessando os tempos a bordo do fantasmagórico encouraçado Potemkin”. Tripulado “por uma marujada ignorante e prepotente”, capaz de assassinar seus oficiais, ou as “cabeças pensantes”, tal encouraçado navegaria “erraticamente, mudando de proa a cada instante, até encalhar”.
Aliás, essa é a mesma imagem que a historiografia reacionária brasileira tem a respeito da revolta da esquadra, em 1910, comandada pelo marujo João Cândido, contra a utilização da chibata em pleno século 20. Desse modo, a pretensa visão “abrangente sobre o que realmente ocorreu no Brasil”, durante os governos do PT, não passa de uma cortina de fumaça para esconder a história da “elite” como governante do país. Na verdade, o coronel Boggo procura recuperar as ideias elitistas, racistas e nazistas contidas num fantasmagórico livro chamado Mein Kampf. Ao acusar o PT de fundar um Reich, ele apenas utilizou a velha tática do ladrão que procura desviar a atenção dos perseguidores.
Seu recado pode ser dito em poucas linhas. Isto é, o povo brasileiro, cuja maioria absoluta é constituída de pobres, ou “marujada ignorante e prepotente”, tende a votar novamente na esquerda. Esta, porém, faria parte daquele grupo de “velhos marinheiros, herdeiros do Potemkin... incapazes de fazer qualquer coisa de útil”. Sem aprender, continuando ignorante, esse grupo navegaria de novo “à matroca, rumo ao mesmo destino de seu predecessor: o encalhe”. Em tais condições, caberia à “elite da coletividade”, “revoltada com esse estado de coisas”, proclamar ter chegado ao limite de sua capacidade de suportar tal situação.
Como? Apelando à mídia e às forças armadas para fazer uma nova “revolução redentora”. O problema é que o coronel esqueceu que sua imagem sobre o Potemkin se aplica como luva a essa “revolução” e à ditadura implantada em 1964. Foi ela quem navegou à matroca e encalhou, obrigando suas “cabeças pensantes” a chamarem os “subtenentes” para salvar o encouraçado. Mas o estrago no casco era tão grande que os “subtenentes”, a exemplo de Sarney, Collor, Itamar e FHC, por cerca de dezessete anos, foram incapazes para fazê-lo flutuar e navegar novamente.
Foi diante dessa incapacidade que alguns “subtenentes” e algumas “cabeças pensantes” chamaram a “marujada ignorante” para fazer o encouraçado flutuar. E a “marujada ignorante” não só fez o Potemkin Brasil flutuar, como criou a expectativa de fazê-lo navegar, não só abolindo a chibata, mas também melhorando as condições de alojamento, alimentação e liberdade de andar pelo convés sem ser reprimida.
Essa expectativa levou parte da “marujada” a supor que estava em curso um projeto político que substituísse o conflito inerente às desigualdades de classe pelo consenso em relação à ascensão social necessária ao consumo na sociedade de mercado. Sonia Fleury, por exemplo, acentuou que, para além da mera ideologia, restaria pensar em que medida tal projeto seria realizável. Cândido Grzybowski, por seu turno, embora pensando o oposto do coronel Boggo, considerou que tal projeto, perseguido pelos governos petistas, estaria rebentando e se esgotando na praia.
Para Grzybowski, não daria mais para esperar qualquer coisa, em especial transformações substanciais, da coalizão de forças e da hegemonia constituída, que têm o PT como protagonista no nível oficial. Seria preciso gestar uma “nova onda”, voltando às bases, fazendo o que foi feito na resistência e derrota da ditadura. Isto é, um “trabalho de educação popular e cidadã”, embora numa outra realidade, de democracia e com amplo espaço de liberdade. Ou seja, ele acredita que o decisivo, para qualquer mudança, consiste em que as grandes massas se coloquem em movimento, mesmo sem haverem participado da educação popular.
É verdade que este trabalho educacional de base nunca deve ser abandonado, inclusive como uma das condições para medir o pulso das grandes massas e para formar lideranças locais. No entanto, na maior parte das vezes, as grandes massas do povo, mesmo não sendo atingidas por ações educativas, se jogam na luta espontaneamente, negando aquilo que lhes incomoda, como aconteceu no final dos anos 1970, início dos anos 1980, em junho de 2013 e agora.
Já para Fleury, a inviabilidade do projeto em curso reside em seu nacional-desenvolvimentismo. Ao tomar o Estado como propulsor do crescimento econômico, tal projeto não levaria em conta as particularidades do poder político, que seria frágil frente aos interesses empresariais constituídos como poder no interior do Estado. O Estado seria incapaz de contemplar os interesses subalternos na disputa dos recursos públicos. Em tais condições, a fetichização do Estado pelo nacional-desenvolvimentismo, ao invés de dar lugar ao Estado democrático fortalecido, seria substituído pela fetichização da eficiência do mercado, concebido como suficiente para atender às necessidades de reprodução social.
No entanto, de que Estado autônomo ela está falando? Do Estado do nacional-desenvolvimentismo varguista, juscelinista ou militar? Todos esses Estados foram capazes de atuar como representantes de interesses específicos. O Estado da era Vargas teve autonomia diante da burguesia atrelada aos latifundiários do café, mas estava subordinado aos interesses e à visão progressista dos latifundiários sulistas. Estes enxergavam na industrialização e na política de paz social a blindagem contra a revolução comunista. Nas eras JK e militar, o Estado esteve subordinado à burguesia brasileira interessada num desenvolvimento associado e subordinado ao capital estrangeiro. Subordinação que se acentuou no período neoliberal, inclusive com o desmonte de setores importantes do próprio Estado e com a devastação do parque industrial.
Assim, há momentos, na história, em que o Estado consegue alguma autonomia. Isto ocorre quando as lutas de classe chegam a um ponto em que nenhuma das classes em luta tem força suficiente para se impor às demais. Nesse caso, o Estado pode agir como árbitro de última instância, para legitimar mudanças econômicas e/ou sociais já consolidadas, em geral mudando o próprio Estado. Isso permite ao Estado atuar repressivamente, seja contra as classes subalternas, seja contra as classes dominantes, embora no interesse destas.
Exemplos dessa situação podem ser vistos na abolição da escravatura e na transição do regime militar. Em ambos os casos, legitimaram-se situações econômicas e sociais já dominantes, mas o Estado promotor modificou-se, pelo menos formalmente. Nesse sentido, Fábio Konder Comparato tem razão ao dizer que o nível oculto do atual Estado brasileiro é formado pelo grande empresariado financeiro, industrial, comercial, de serviços e do agronegócio. Faltou apenas acrescentar que, além dos aliados históricos na corporação militar, o mais importante aparato de defesa do Estado, aquele empresariado, ou burguesia, possui aliados históricos em outros aparatos do Estado, como o Judiciário, o Legislativo e o Executivo, mesmo que na chefia do governo esteja um partido de esquerda.
Através desses aparatos, e com seu predomínio na economia, aquelas frações burguesas buscam manter sua unidade com a fração que domina o oligopólio empresarial da mídia e atrair a classe média superior e média para seu campo. E, embora tenham horror a pobre, a exemplo do coronel Boggo, elas também se esforçam para manter sua influência ideológica e política sobre o proletariado e o subproletariado.
Assim, quando a Cepal sugere como eixos centrais do desenvolvimento com igualdade o aumento da produtividade industrial e o emprego formal, ela simplesmente concorda com o desenvolvimento capitalista, seja nacional ou associado aos capitais estrangeiros. O problema consiste em que o aumento da produtividade é incompatível com o aumento do emprego formal. Isto, mesmo que os capitalistas paguem um salário justo, correspondente ao custo socialmente necessário para a reprodução da força de trabalho. Neste caso, eles continuarão se apropriando da mais-valia, seja ela absoluta ou relativa, da força de trabalho empregada.
Mais trágico é que o aumento da produtividade altera para pior o padrão estrutural de desigualdades. De cara, reduz o emprego formal. Quanto maior a produtividade, maior a participação do capital constante, ou do trabalho morto, e menor a participação de força viva de trabalho. Portanto, a produtividade crescente torna cada vez mais desnecessária a participação da força humana de trabalho no processo produtivo. Para dar solução a essa contradição inarredável do capitalismo desenvolvido, a única solução possível é a transformação da propriedade privada dos meios de produção em propriedade social.
No Brasil, essas incertezas, instabilidades e problemas vieram à tona pelo fato de a ”marujada ignorante e prepotente” haver colocado o encouraçado quase em condições de navegar. Apesar disso, as “cabeças pensantes” da “elite” juraram que a mobilidade urbana e aérea para a Copa seria um caos. Duvidaram que os estádios tivessem condições de jogo. E apostaram que as manifestações contra a Copa iriam mobilizar grandes multidões.
Ao se darem conta de que ocorria o inverso, correram atrás do prejuízo para buscar lucros financeiros. Ao mesmo tempo, se dividem entre os que pretendem recolocar no leme os “subtenentes”, através da disputa eleitoral, e os “duros” e “raivosos”, que pretendem apelar para uma esparrela idêntica à de 1964. Com isso, colocam em evidência que seus projetos são muito diferentes das necessidades do povo brasileiro, apesar de ainda não estarem maduras as condições para superar o capital.
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