Por Wladimir Pomar
Quem quer que preste um pouco de atenção aos atuais programas eleitorais nas rádios e tevês, sem dúvida, notará um empenho consistente de alguns candidatos pelo “privado”. Para o pastor Everaldo, por exemplo, todos os problemas atualmente presentes na sociedade brasileira só poderão ser resolvidos se o setor privado se encarregar deles, porque é “quem entende do assunto”. Sequer se apercebe do ridículo de prometer a solução dos problemas dos transportes coletivos no Brasil através de sua entrega ao setor privado, embora qualquer criança saiba que tais transportes já são privados.
Aécio Neves não é tão abertamente descarado e descuidado como o pastor Everaldo. É muito mais articulado. Sabe que todos os transportes coletivos no Brasil são deficientes, ineficientes e caros justamente por serem privados. Sabe que a maior parte dos atuais problemas brasileiros é devida às privatizações selvagens e pouco transparentes do período FHC, aí incluída a crescente privatização da saúde e da educação. E sabe que não pode defender abertamente a regressão ao Estado Mínimo neoliberal. Portanto, sabe que as besteiras do pastor Everaldo sobre um estatismo que não existe podem ser facilmente desmascaradas.
Nessas condições, o empenho de Aécio pelo privado é muito mais sibilino, manhoso, escorregadio. Quando fala em reduzir pela metade a máquina do governo ele pretende simplesmente transferir para o setor privado as atribuições que Lula e Dilma retomaram para o governo. Aécio procura apenas dar outra roupagem ao Estado Mínimo. E quando fala em transformar o ministério da Justiça em ministério da Segurança e da Justiça, significa apenas que pretende enfrentar os problemas sociais com mais repressão e menos justiça, um velho cacoete das classes dominantes brasileiras.
Talvez, um pouco menos manhoso do que o privatismo de Aécio é o de Marina. Ela procura dourar sua estratégia não só com uma inexplicável declaração de “não abandonar o Brasil”, mas também com promessas de “sustentabilidade”. Nada muito diferente do que comentaristas da Globo e de outras empresas de TV falam quando se referem ao absurdo dos altos preços praticados no Brasil, ao contrário dos baixos preços norte-americanos. Para eles, os altos preços brasileiros seriam resultado de uma combinação de falta de ação do governo, do custo Brasil e da baixa produtividade industrial e agrícola.
Não explicam o que cada um desses fatores significa, mas insinuam que todos devem ser debitados na conta dos governos petistas. O mesmo que faz Marina. Mas talvez ela não saiba que os altos preços praticados no Brasil têm por base alguns fatores estruturais. Temos, acima de tudo, preços de monopólio. Isto é, preços que decorrem de uma situação em que a existência de apenas uma ou de algumas poucas grandes empresas sobre ramos industriais e agrícolas determinados lhes permite praticar preços administrados muito acima dos custos de produção. Isso é evidente no sistema financeiro e nas indústrias automobilística, química, cimenteira, siderúrgica e outras, todos do setor privado, praticamente determinando os patamares dos demais preços da economia.
Temos, além disso, evidentes problemas de custos na infraestrutura de energia e de transportes, assim como na capacidade produtiva de inúmeros ramos de alimentos e bens não-duráveis, ou de consumo corrente. Com algumas exceções na infraestrutura portuária e de energia, tudo o mais se encontra nas mãos do setor privado. O que obriga os privatistas a culparem os impostos e a máquina estatal por emperrarem o funcionamento privado.
Portanto, embora o colorido pião eleitoral pareça apresentar tonalidades diferentes, sua ponta está cravada numa única questão contraditória do desenvolvimento nacional: mais ou menos privatismo, ou menos ou mais Estado? O mais esdrúxulo nessa questão é que, excetuando a ultraesquerda, que pretende uma estatização completa, a maior parte da esquerda sabe que a propriedade privada ainda não esgotou seu papel histórico no Brasil.
Uma parte dos analistas econômicos chega a considerar que a candidatura Dilma tem em vista alterar no sentido ainda mais privatista a estratégia cuja sustentação residiria num “arco de aliança entre o capital e a população”. No último encontro de Davos a presidenta teria não só mantido sua posição a favor do setor privado, mas ido além, ao considerar fundamental o aporte de recursos estrangeiros em investimentos diretos, especialmente em infraestrutura.
Se isso é verdade, o que leva a maior parte do “setor privado” a querer derrotar Dilma? Por que a grande maioria do “setor privado” está inquieta? Por que adiou os investimentos? Por que torce para que os índices econômicos pré-eleitorais sejam negativos ou positivamente ruins?
Os mesmos analistas que apontaram maior tendência privatista do governo Dilma sugerem que a atração de capitais estrangeiros pode afetar a competitividade dos capitais “nacionais” e obrigar o governo a reforçar o papel do Estado para atender as crescentes demandas da população brasileira, em especial da majoritária população urbana.
Convenhamos que uma das críticas que os setores populares não-privados e não-privatistas fizeram e fazem aos governos Lula e Dilma consiste em não haverem estabelecido regulamentos para os investimentos estrangeiros. Estes, mesmo quando são destinados a investimentos diretos, continuaram e continuam vindo para o Brasil de acordo com seus próprios planos e interesses, não de acordo com os planos e os interesses estratégicos do país.
Nesse sentido, Dilma não inovou em nada ao considerar fundamental o aporte de recursos estrangeiros. E o setor privado brasileiro, em grande parte, já está acostumado, há muito, a aliar-se aos capitais estrangeiros que aportam no país, e que hoje representam parte considerável do estoque de capital “nacional”. Portanto, não é por isso que a burguesia nativa está “inquieta” e “pessimista”. Ela está inquieta e pessimista por outros motivos.
Já estava inquieta porque Dilma se comprometera a manter as políticas de aumentos salariais, geração de empregos e transferências de renda para os mais pobres. Depois, ficou ainda mais inquieta quando Dilma achou normais as mobilizações populares de junho de 2013 e se comprometeu a envidar esforços para dar solução aos problemas relacionados com a mobilidade urbana, saúde, educação, saneamento, moradia e segurança. E ficou extremamente inquieta com a proposta de uma Assembleia Constituinte para a reforma política e com a regulamentação da organização de Conselhos Populares, embora previstos na Constituição.
Em resumo, a maior parte da burguesia e grande parte da pequena-burguesia tornaram-se “inquietas” e “pessimistas”, apesar das concessões privatistas feitas pelo governo, porque a solução dos problemas que emergiram nas manifestações de 2013 depende de maior intervenção do Estado na economia e na sociedade.
É nesse mar de “inquietação” e “pessimismo” das classes dominantes e de parcelas das classes intermediárias dominadas que navegam o pastor Everaldo, Aécio Neves e Marina Silva. Se a campanha Dilma supuser que pode navegar no mesmo mar privatista, terá dificuldades em manter seus compromissos quanto a salários, empregos, programas sociais e mudanças estruturais nos transportes de massa, saúde, educação, saneamento, moradia e segurança.
Embora no momento não estejamos diante de uma contradição conflituosa entre a intervenção estatal e o setor privado no Brasil, o aumento da participação do Estado na economia, inclusive para regular, direcionar e controlar os investimentos externos, se tornou uma questão chave para a própria concorrência capitalista e para o desenvolvimento econômico e social do país. O problema consiste em saber até que ponto a campanha Dilma terá coragem em avançar nesse mar que a burguesia teme como o diabo da cruz.
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