segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Coisas da vida: o empenho estatista


Por Wladimir Pomar

Algo impressionante na atual campanha eleitoral é o empenho estatista conjunto de diferentes correntes que se autointitulam de esquerda, sejam socialistas, sejam comunistas. Nesse sentido, é inexplicável que elas, teoricamente unidas nessa questão, não consigam aliar-se para ter algum índice mais expressivo de adesão popular.

Algo também impressionante é o fato de essas correntes não perceberem que tal tipo de estatização nada mais é do que o estatismo do modelo soviético de socialismo. E que um alto grau de estatização, independentemente de ser adequado ou não, só possa resultar de uma revolução que destrua o antigo Estado e construa um novo. Em outras palavras, a estatização completa só pode fazer parte da estratégia, não das disputas táticas. Estas, a não ser em situações revolucionárias, devem ter por objetivo reformas que levem à acumulação de forças.

Além disso, não se pode desprezar a experiência histórica da revolução russa e do modelo de estatização que se tornou predominante na União Soviética, e a levou à regressão capitalista quando seu Estado mudou de natureza. Em países de desenvolvimento capitalista atrasado, como era a Rússia de 1917, ainda seria necessário ter a participação do mercado e de empresas capitalistas para desenvolver as forças produtivas. Foi o que Lênin tentou com a NEP, ou Nova Política Econômica.

Ou seja, para alcançar um estágio de produção que tenha a capacidade de suprir todas as necessidades sociais e torne dispensável o trabalho vivo, a estatização terá que ser parcial e funcionar de acordo com as leis do mercado. O socialismo terá que ser um processo de transição econômico-social, no qual conviverão, cooperarão e competirão vários modos de produção, inclusive capitalistas e socialistas. Essa é a forma de desenvolver as forças produtivas que a burguesia não foi capaz de desenvolver até então. A questão chave é que o Estado tenha natureza socialista.

Por várias razões históricas, principalmente a ameaça de invasão hitlerista e o sucesso da economia de guerra durante a segunda guerra mundial, a NEP não pôde cumprir seu papel. Nos debates ocorridos nos anos 1950, predominou a corrente estatista, que levou a economia soviética a um impasse e, no final dos anos 1980, à crise e ao fracasso total.

Tendo em conta essa e outras experiências socialistas, é ainda mais complicado supor que a eleição de um governo de esquerda, incrustrado num Estado capitalista, tenha a possibilidade de estatizar tudo. No Brasil, a maior parte dos aparatos estatais se encontra sob o domínio da burguesia. O modo de produção capitalista é absolutamente predominante. Restaram poucos instrumentos estatais de intervenção na economia. E, além da indústria haver reduzido sua participação na economia, a maior parte desta é dominada pelo sistema de monopólio.

Nessas condições, a proposta de estatização completa não passa daquilo que Lênin chamava de doença infantil do esquerdismo no comunismo. É essa doença que impede as correntes estatistas de esquerda de avaliarem o que realmente está em jogo na atual disputa eleitoral. Diante do projeto macroeconômico neoliberal do marinato, por exemplo, elas consideram que o projeto de Dilma tem a mesma natureza. Ambas se renderiam à supremacia do capital financeiro, Marina legitimando a independência do Banco Central e Dilma permitindo-a. Mas então por que diabos o capital financeiro está em campanha aberta para derrotar Dilma e o PT?

Ainda segundo aquelas correntes, o lulismo e o petismo funcionariam apenas em períodos de expansão econômica, quando podem transformar os excedentes em programas sociais. Na retração, como a atual, o lulismo e o petismo optariam pelo grande capital, através de desonerações, isenções fiscais, linhas de crédito do BNDES e da privatização do pré-sal. Porém, se tais opções pelo grande capital forem reais, mais uma vez cabe a pergunta: por que a burguesia pretende trocar Dilma por Marina? Essa burguesia seria estúpida ao pretender trocar o certo pelo duvidoso?

As correntes estatistas também supõem que os adeptos do enfrentamento Dilma-Aécio, como expressão do enfrentamento esquerda versus direita, teriam ficado em polvorosa e pretendem “tocar o terror” ao afirmar que o bolsa-família vai acabar. Lembremos que a possibilidade de os petistas “tocarem o terror”, no caso das pesquisas eleitorais indicarem a vitória da oposição, tem sido sustentada há tempo pela extrema-direita militar, de pijama e na ativa. Esse “terror” seria o toque de alerta para a intervenção militar, a retomada do programa ditatorial de 1969, e a liquidação da “cubanização” e do “chavismo” no Brasil.

Portanto, não faz bem à própria saúde que correntes de esquerda alimentem a ultradireita com argumentos desse tipo. Por  outro lado, quem pode acreditar sinceramente que os programas neoliberais de Aécio e Marina, que são iguais de cabo a rabo, manterão o bolsa-família, que consideram um programa de manutenção de vagabundos? É preciso ter perdido a medida das coisas para propalar que a denúncia dessa medida programada, tenha ela o nome simples de “extinção”, ou sofisticado de “revisão para melhor”, constitua “tocar o terror”.

O aplainamento da contradição esquerda versus direita é um dos principais motes da campanha marinata. Contraditoriamente, quanto mais o marinato se afirma como “terceira via”, mais ele se compõe com o grande capital. Cacifa-se assim como o novo polo da direita contra a esquerda “chavista”, “petista”, “lulista”, “cubana” etc. etc. Da mesma forma que o tucanato estava na esquerda e substituiu o pefelismo como o polo da direita para implantar o neoliberalismo, o marinato, que inclui o PSB, a Rede, o PPS e outros segmentos oriundos da esquerda, tende a substituir o tucanato.

Por que? Porque a disputa política esquerda versus direita continua concentrada em decidir que caminho de desenvolvimento capitalista será seguido. Com um agravante. O caminho seguido por Lula e Dilma, mesmo contendo componentes neoliberais do passado tucano, chegou a um patamar em que necessita de mudanças estruturais para continuar se desenvolvendo. Para se manter como polo de esquerda, o petismo terá que apontar para essas mudanças estruturais.

Mesmo sem propor qualquer medida socializante, não é possível desenvolver a indústria e a agricultura sem introduzir reformas democráticas na propriedade. Isto é, sem abrir condições para que pequenos e médios capitalistas urbanos e rurais desenvolvam sua capacidade produtiva, multipliquem os postos de trabalho e elevem a oferta de bens a preços competitivos. O que obriga o Estado brasileiro a romper com os sistemas de monopólio e oligopólio nacional e estrangeiro que engessam a economia e lhes impõe altos preços.

Também não é possível alcançar taxas maiores de crescimento sem elevar as taxas de investimento produtivo. O capital acumulado pelo Estado e pela burguesia nativa é insuficiente. Com o defeito de que grande parte do capital da burguesia nativa é utilizada para se reproduzir não através da produção, mas através da especulação financeira e da dívida estatal. Para solucionar essa situação o Estado precisará: a) colocar barreiras aos investimentos externos de curto prazo; b) regular a entrada dos investimentos estrangeiros diretos para as lacunas produtivas do país e para a transferência de novas e altas tecnologias; e c) reformar as taxas de juros e as taxas de câmbio de modo que seja mais rentável apostar em processos produtivos do que na especulação financeira.

Para ordenar de alguma forma o caos urbano existente no Brasil, o que inclui altas taxas de mortes por acidentes de trânsito e por choques entre marginais e policiais, o Estado brasileiro também terá que intervir pesadamente, pelo menos nas 100 maiores cidades do país. Elas abrangem mais de 50% de toda a população, ou mais de 100 milhões de habitantes. Elas é que precisam ser o alvo principal para começar a resolver os problemas de transporte, saneamento, saúde, educação, titulação do solo, moradia, recuperação ambiental e industrialização.

Em outras palavras, para tirar o país do buraco em que foi jogado pela devastação neoliberal e superar os limites da política petista de crescimento através do aumento do consumo, o Estado brasileiro terá que modernizar as empresas estatais sobrantes e constituir novas empresas estatais para produzir internamente os equipamentos necessários aos transportes de massa, à construção civil e pesada, à infraestrutura, à agricultura e à indústria de bens não-duráveis e duráveis.

São essas empresas estatais que podem estabelecer relações de ganhos compartilhados com empresas estrangeiras associadas e garantir aos capitais privados nativos as condições de absorção de novas e altas tecnologias e de elevação de sua competividade. São elas, e a ação política e administrativa do Estado, que podem orientar a redistribuição menos desigual da renda, através do aumento do padrão salarial, da universalização da saúde e da educação pública, e dos programas de transferência de renda.

O marinato e o tucanato consideram que esse padrão de intervenção do Estado, mesmo mantendo a propriedade privada, é um retrocesso a meados do século 20. Vão fazer de tudo para impedir isso e retornar ao tripé neoliberal. Nessas condições, querer enfrentar esse polo da direita com o estatismo de tipo soviético é nos condenar à inação, ao invés da luta por novos avanços. Coisas da vida!






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