Por Wladimir Pomar
Há certa tendência em considerar que a polarização PT-PSDB, que se tornou evidente nas eleições de 1994, 1998, 2002, 2006 e 2010, foi apenas uma polarização pelo domínio partidário da máquina do Estado. Tal visão prevalece tanto na esquerda da esquerda quanto na chamada “terceira via”. E se reflete nas propostas de estatização completa, pela esquerda da esquerda, e nas propostas de uma “nova política”, que crie uma “união” de todo o país, pela “terceira via”.
No caso da “terceira via”, tais propostas não são tão “novas” como pretendem. Elas não diferem muito das propostas de “paz social” dos anos 1930, nem da “redenção revolucionária” militar dos anos 1960 e 1970, embora num contexto histórico totalmente diferente. Todas têm em comum o desejo de aplainar as classes, seus interesses contraditórios e a luta de classes que resulta do conflito entre tais interesses.
A polarização PT-PSDB foi apenas expressão desse conflito de interesses no contexto histórico de fracasso do neoliberalismo. Polarizações idênticas ocorreram em quase todos os países latino-americanos. Elas se deram num momento em que o socialismo ainda não se apresentava como alternativa amadurecida, e em que a democracia e a liberdade formal burguesa eram consideradas conquistas e avanços positivos. Nessas condições, objetivamente, sobressaiu a disputa entre a devastação neoliberal e um novo tipo de desenvolvimento capitalista.
Em termos práticos, essa disputa no campo do desenvolvimento capitalista tinha por base a manutenção ou a redução dos níveis de desemprego, o rebaixamento ou a elevação dos salários, a contração ou a expansão da demanda, ou do consumo, e a estagnação ou a retomada do crescimento. E enfrentava como contraponto a hegemonia das corporações empresariais monopolistas e/ou oligopolistas sobre a economia real, sobre o pensamento econômico e a maior parte dos aparatos estatais nacionais.
No Brasil, foi preciso cerca de dez anos para que as políticas de redução do desemprego, elevação dos salários, expansão do consumo e retomada do crescimento se confrontassem com as crises internacionais e colocassem a nu os problemas estruturais desse tipo limitado de desenvolvimento capitalista. Vieram à tona, apesar de não claramente para todos, a desindustrialização inercial iniciada nos anos 1970-1980, a vulnerabilidade dos principais bens primários de exportação diante da queda de seus preços internacionais, a dependência aos investimentos externos e os impedimentos à participação popular no exercício da democracia.
Tais problemas estruturais, embora ainda não tivessem feito retroceder o crescimento dos empregos e dos salários, começaram a afetar o crescimento e a expansão do consumo. As manifestações de junho de 2013 representaram certa tomada de consciência desses problemas por grande parte das camadas populares e intermediárias, em especial em relação às limitações da democracia formal.
Diante disso, acelerou-se a reorganização das forças políticas, tanto “desenvolvimentistas” quanto neoliberais. Especial relevo conquistou um “desenvolvimentismo” defensor de uma estratégia de “primarização” da economia brasileira, tendo por base alimentos, petróleo e indústria automobilística. O agronegócio forneceria bens indispensáveis à reprodução da força de trabalho internacional; o petróleo, com a adição do pré-sal, ocuparia posição de relevo no setor energético mundial; e as grandes empresas automobilísticas garantiriam a inserção do Brasil nas amplas cadeias industriais globais de geração de valor e de acumulação da terceira revolução industrial.
Estaríamos, portanto, diante da necessidade de uma nova estratégia para o Estado nacional, capaz de sustentar um novo modelo de desenvolvimento “primarizado” da economia brasileira. Modelo cujas conexões reorganizariam as políticas monetárias, cambiais, financeiras e fiscais e obrigariam as empresas do país a seguir o rastro das empresas principais daqueles três setores para ingressar nas novas revoluções industriais.
Por razões que a própria razão às vezes desconhece, para essa corrente “desenvolvimentista” migraram setores políticos que, na falta de melhores qualificativos, podem ser denominados socialistas, autonomistas, “sustentabilistas”, centristas e centro-direitistas. Todos congregaram-se sob o guarda-chuva PSB-Rede, ou “terceira via”, aparentemente oposto a qualquer polarização e a favor da união geral.
Seu primeiro problema consistiu em que, para firmar sua estratégia e sua proposta de novo modelo de desenvolvimento “primarizado”, tinha que “desconstruir” ou “desfazer” as políticas anteriores, levadas a cabo pelo PT. Ou seja, tinha que se firmar como uma negação, como uma nova polaridade ou um novo polo negativo, inclusive como condição para atrair setores populares descontentes com as prioridades dos governos petistas.
Assim, por mais que tenha se esforçado por apresentar-se como um “novo” positivo, o que o destacou desde o início foi sua negatividade. O que, em termos dialéticos, poderia até ser algo futuramente positivo, desde que a contradição fosse tratada adequadamente. Mas a “terceira via” queria e continuava querendo evitar a pecha da polarização. E, na contramão de seu desejo e da objetividade, a fatalidade transtornou e causou uma total reviravolta no processo político. Catapultou o PSB-Rede ao posto de principal polaridade anti-PT. Criou-se, assim, a situação que a “terceira via” procurara negar. Isto é, a inevitabilidade da polarização decorrente das condições em que a luta de classes ocorre hoje no Brasil.
Assim, como é comum ocorrer nos processos dialéticos, o PSDB viu-se rapidamente deslocado de sua antiga posição de polaridade anti-PT, substituído pela aliança PSB/Rede. Esta, apanhada no contrapé, viu-se constrangida a negar-se como “terceira via”, radicalizando a “desconstrução” ou o "desfazimento" das políticas econômicas e sociais dos governos petistas de forma ainda mais intensa do que os tucanos. Sua proposta de “união de todos” escoou pelo ralo da “seleção dos melhores”.
Em vista disso, a aliança PSB/Rede não podia se contentar com a “autonomia” relativa do Banco Central, como fingiam sugerir os tucanos. Tinha que impor a “independência” e ampliar o poder dessa instituição sobre as políticas de emprego, salários, créditos, programas sociais e comércio internacional. Para ungir-se firmemente como a polaridade negativa inconteste do PT, a “desconstrução” ou “desfazimento” da tímida política petista de subordinação do Banco Central às políticas de desenvolvimento precisava ser muito mais incisiva.
Tinha que deslindar claramente para o sistema financeiro e para as grandes corporações empresariais toda a cadeia de consequências que a “independência” dessa instituição vai causar, de modo que a maior parte dessas classes dominantes não vacilasse em migrar do apoio ao neoliberalismo envergonhado do tucanato para o neoliberalismo escrachado do marinato.
A partir dessa “independência”, pensar em política industrial com a participação ativa do Estado estará totalmente fora de cogitação. Supor a possibilidade de integração sul-americana não passará de uma ilusão. Acreditar que o Brasil continuará fazendo parte dos BRICS será uma heresia. O “custo Brasil” voltará a ser creditado aos salários e aos benefícios sociais, justificando o arrocho sobre os assalariados, a expansão descontrolada da terceirização, os ajustes cambiais e outras medidas que encareçam as importações (com exceção das peças automobilísticas) e premiem as exportações primárias.
Assim, numa das tramoias típicas da dialética, a “terceira via” de “desenvolvimento primarizado” transmutou-se rapidamente em neoliberalismo radical, com endereço certo para quem detém a hegemonia. Isto, de tal modo, que o tucanato se viu depenado de sua plumagem e não sabe o que fazer para reconstruir a polarização PT-PSDB.
A real polarização entre “vias de regressão capitalista” e “vias de desenvolvimento capitalista ‘perigosas’, com redistribuição de renda, aumento da interferência do Estado na economia e maior participação popular nos assuntos do Estado”, tem, agora sua expressão política na polarização PT-PSB/Rede.
Assim, a não ser que ocorram outras fatalidades, é em torno dessa polarização que as eleições de outubro vão ser definidas. Como diria o imperador romano Júlio César, se falasse português: a sorte está lançada! Quem sobreviver, verá!
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