Por Wladimir Pomar
Não deixa de ser interessante como alguns teóricos inteligentes do capitalismo apresentam o socialismo e os problemas do próprio capital. Delfim Netto é um deles. Em artigo no Valor Econômico de 16/09 ele explica que “um dos grandes mitos até pouco tempo” era que o socialismo seria “a forma mais adequada de organizar a sociedade" e de produzir “a felicidade geral”.
Ele constata que, vivendo “num mundo cruel, sujeito às leis da escassez”, e num “quadro de desigualdades exageradas”, “a juventude reage indignada”, acreditando que tudo decorre do "miserável capitalismo". E aceitaria “sem crítica” o mundo do "maravilhoso socialismo". Compararia “o miserável capitalismo real com o perfeito socialismo ideal”, sem se preocupar em “saber se o programa que o socialismo ideal promete sem custo (liberdade, igualdade, justiça e felicidade) foi alguma vez, na história, capaz de produzir uma sociedade civilizada”.
É evidente que Delfim Netto não se preocupou com o fato de o “socialismo ideal” só existir na mente dos que acreditam que o socialismo seria “a forma mais adequada de organizar a sociedade" e de produzir “a felicidade geral”. Nem parece saber que o socialismo real é aquele que decorre das contradições do capitalismo real. São essas contradições que levam a juventude e os trabalhadores a buscarem mudanças. Mudanças no “mundo cruel” das “leis da escassez” (em geral, escassez para a maioria e bonança para a minoria proprietária), e das “desigualdades exageradas”.
Nessas condições, o socialismo real só pode ser uma forma transitória de organização da sociedade. Não tem condições de produzir “felicidade geral”, porque a crueldade, a escassez e as desigualdades do capitalismo real demandam tempo, sangue, suor e lágrimas para serem superadas. Pode apenas ser uma organização da sociedade que procure reduzir a infelicidade da maioria através de uma luta árdua e constante por liberdade, igualdade e justiça. Talvez por não entender o "socialismo real" desse modo, Delfim Netto acredite que ele morreu. Está certo em dizer que ele não constituiu “o estágio superior do capitalismo”. E que, em alguns lugares onde ocorreu, foi “apenas” um “medíocre substituto” do capitalismo real.
Também poderia ter dito, como Marx previra, que na forma em que foi tentado, esse socialismo “só poderia retornar à própria m...”. Portanto, para comprovar tal tese, Delfim Netto não precisava valer-se da estupidez do que supõe ter sido um “influente economista” soviético, um tal de S. G. Strumilin. Em "Industrialização e Epígonos do Populismo", in Economia Planificada, 1927, esse epígono afirmou que “Nossa tarefa não é a de estudar a economia, mas mudá-la. E mudá-la precisamente no sentido do voluntarismo, pois não estamos sujeitos a nenhuma lei".
Combater o socialismo, tanto o “ideal” quanto o “real”, com a utilização de argumentos de parvos como Strumilin não faz jus à inteligência e à cultura de ninguém. Delfim Netto poderia ter transcrito e combatido algum argumento socialista de Marx, o autor da tese de que o comunismo (não o socialismo) é o estágio superior do capitalismo, para chegar à conclusão de que, em certas circunstâncias, o “socialismo real” pode ser uma mediocridade capitalista.
O problema, para ele, como para qualquer outro que considere que o “socialismo morreu”, consiste em que é o próprio capitalismo real, ao desenvolver-se, que tende a ressuscitar o socialismo. Isso ocorre porque, principalmente ao desenvolver-se científica e tecnicamente, o capitalismo real materializa tendências incontornáveis. Automatiza cada vez mais o processo produtivo, criando uma imensa capacidade produtiva; concentra cada vez mais o capital-orgânico e o capital-dinheiro em algumas poucas mãos; utiliza cada vez mais o capital-dinheiro como instrumento de acumulação financeira, ou de dinheiro fictício; e descarta a maior parte da força de trabalho, criando uma massa imensa de miseráveis e reduzindo ao máximo a capacidade de consumo.
Ou seja, por um lado, o capitalismo apresenta à humanidade os meios científicos e técnicos capazes de criar felicidade. Por outro, ele gera crises de todos os tipos, erigindo o absurdo civilizatório de concentrar as riquezas numa minoria de 1% e relegar os outros 99% ao desemprego tecnológico, à pobreza, à miséria, à sobrevivência antissocial e à infelicidade. A solução mais radical para superar tal absurdo consiste na transformação da propriedade privada em propriedade social. Apenas desse modo toda a sociedade pode ter acesso aos frutos do trabalho social. Porém, como o capitalismo domina Estados que possuem arsenais nucleares, não se pode descartar a possibilidade de que aquela minoria de 1% utilize a destruição em massa como forma de tentar evitar a transformação da propriedade privada em propriedade social.
Também é preciso levar em conta que a “solução mais radical” não pode efetivar-se por toda parte, com o ingresso imediato no comunismo. Mesmo nos casos dos países científica e tecnologicamente avançados, em que a capacidade produtiva pode atender às necessidades de todos os seus cidadãos, será necessário um processo de transição, que Marx chamou justamente de “socialismo”.
As dificuldades e os problemas dessa transição podem ser mais ou menos complicados, e sua duração pode ser mais ou menos longa, dependendo do estágio de desenvolvimento alcançado pelo próprio capitalismo. Este tem se desenvolvido de forma desigual pelo planeta. Em cada local adquiriu contornos e características nacionais acentuadas, configurando vários “capitalismos reais”. Portando, não haverá um “socialismo real”, mas vários “socialismos reais”, dependendo dos contornos e características dos diversos capitalismos nacionais.
O socialismo de tipo soviético foi um tipo de socialismo real que fracassou. Os socialismos de mercado chinês e vietnamita são socialismos reais em curso de desenvolvimento e ainda é cedo para garantir que eles transitarão com sucesso para o comunismo. Outras tentativas de socialismo real poderão ocorrer. De qualquer modo, o fato de que várias alternativas de socialismo existam e estejam no horizonte da juventude, mesmo idealmente, é uma demonstração de que o socialismo não morreu. Por isso, ao contrário do que supõe Delfim Netto, os “homens mais sofridos” terão que comparar tanto o miserável "socialismo real" soviético quanto os demais socialismos reais “que a história lhes revelou”, não só com o maravilhoso "capitalismo ideal", mas também com o “capitalismo real” de seus próprios países.
Não se pode negar que Delfim Netto, ao fazer a crítica do “capitalismo ideal”, no qual “todas as condições que encantam alguns economistas” seriam “satisfeitas”, está fazendo a crítica do capitalismo neoliberal. Aponta, corretamente, como sedução de “entes metafísicos” e produção de “cérebros peregrinos”, a suposição de que o “rei-mercado” realizaria “automaticamente o máximo de eficácia produtiva, com plena liberdade individual e uma distribuição de renda aceitável”. E reitera que, na vida real, “os homens normais – de carne e osso, que vivem do trabalho honesto”, teriam encontrado, “ao longo da sua história”, “instituições que levaram a uma organização social apoiada na liberdade de iniciativa”, estimuladora da “criação” e da “apropriação de conhecimentos tecnológicos”, que engendrariam “uma crescente eficiência produtiva”.
Os “mercados” seriam, assim, “produto da cooperação natural espontânea entre os homens”. Eles teriam possibilitado “a vida em sociedade”, aumentado “a divisão do trabalho”, que por sua vez “aumentou a eficiência produtiva e coordenou as necessidades de cada um com a capacidade dos outros para atendê-las”. “Mas os mercados”, alerta Delfim Netto, não seriam o "capitalismo". Este seria apenas “o velho mercado da antiguidade, somado a mais um - o mercado de trabalho - e à instituição da propriedade privada”. O capitalismo teria, então, separado “a sociedade em duas classes: os detentores do capital e os que lhes vendem a força de trabalho”.
Essa divisão social do trabalho teria aumentado “ainda mais a eficiência produtiva”, mas criado “dois graves problemas: por um lado... uma exagerada desigualdade de renda e, por outro... as incertezas do trabalhador com a aleatoriedade do seu emprego”. Por isso, o capitalismo só funcionaria “quando protegido por um Estado forte, constitucionalmente limitado, capaz de garantir a propriedade privada e de regulá-la para reduzir seus inconvenientes”.
Assim, após navegar brevemente pelos clássicos da Economia Política, Delfim Netto tenta amarrar seu barco em Keynes, para quem o Estado é o salvador do capitalismo, ao funcionar como corregedor dos desvios e das crises cíclicas dessa combinação do “mercado da antiguidade” com o “mercado de trabalho”. É pena que ele tenha esquecido que a “propriedade privada” surgiu juntamente com o “mercado da antiguidade” e que o capitalismo também revolucionou tal mercado ao transformar o velho artesanato e a velha manufatura na indústria moderna. Indústria que, atualmente, está transformando as ciências e tecnologias em forças produtivas e alcançando um nível de automação e produtividade que Marx foi capaz de visualizar há mais de 150 anos.
De qualquer forma, na atual situação do capitalismo brasileiro, ele só terá condições de funcionar se o Estado, mesmo constitucionalmente limitado, não só garanta a propriedade privada, mas também reforce a propriedade pública, introduzindo uma cunha socialista no sistema. E regule ambas no sentido de: eliminar cartéis e monopólios; democratizar o capital; administrar o câmbio; orientar os investimentos estrangeiros para elevar a produção industrial; retomar a industrialização; rebaixar os juros; impedir o cassino financeiro; promover o crescimento; e realizar uma crescente melhora na redistribuição da renda e na redução das desigualdades econômicas e sociais, principalmente através da educação e do trabalho.
Nesse sentido, Delfim Netto considera trágica (e cômica!) a propaganda eleitoral na televisão. Coerente com sua visão contrária ao neoliberalismo, chama de “indecente desonestidade intelectual” a propaganda “de um dos lados”, deixando de especificar se se trata de Aécio ou de Marina, ou de ambos. E, coerente com sua visão de “capitalismo real” e “Estado forte”, também considera “indigente” a “ausência de ideias do outro” lado. O que, certamente, inclui Dilma. A propaganda deste lado competiria “à altura com a triste figura de uma retrógada ‘verdadeira esquerda nacional’ que se classifica ‘progressista’ e ‘democrática’. Progressista, porque sugere repetir experiências fracassadas. Democrática, porque acredita ser portadora de uma visão privilegiada do mundo”.
Como Delfim Netto não desenvolve sua aversão aos termos “progressista” e “democrática”, não temos condições de avaliar por que ele alia o primeiro a “experiências fracassadas” e o segundo a “uma visão privilegiada do mundo”. Mas seria conveniente lembrá-lo que tal aversão talvez o tenha levado, no passado, a embarcar em “experiências extremamente fracassadas”, tanto do ponto de vista econômico quanto social, e a apoiar “visões privilegiadas do mundo” que conduziram o Brasil a um dos períodos mais regressivos e penosos de sua história política e social.
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