Por Wladimir Pomar
Segundo
Sonia Fleury, a teoria social na América Latina buscou compreender questões
como a pobreza e a marginalidade, intrínsecas dessa forma de capitalismo, e a
caracteriza como uma modernização sem a modernidade. Tal fenômeno teria
permitido ao Brasil chegar a ser uma das principais economias industriais,
ostentando o maior índice de desigualdade mundial. Esta seria fruto de um
crescimento econômico caracterizado por conjugar o processo de modernização
capitalista ao mesmo tempo em que reproduzia estruturas arcaicas de dominação e
exploração: agronegócio e trabalho escravo.
Ou seja,
essa teoria social não leva em conta a pobreza e a marginalidade criadas pelo
nascimento do capitalismo na Inglaterra e na França, nem as modernizações
capitalistas conservadoras da Alemanha, Japão e Rússia. Todos esses países
conviveram com bolsões de pobreza e marginalidade por longo tempo. O
desenvolvimento capitalista nos Estados Unidos manteve a escravidão por quase
um século após a independência. Jamais a modernização capitalista extinguiu
imediatamente todas as estruturas arcaicas de dominação e exploração. Na maior
parte das vezes, as subsumiu às estruturas e aos interesses capitalistas,
incluindo a constituição de exércitos de reserva de pobres ou miseráveis.
No caso do
Brasil, a modernização capitalista agrária dos anos 1960-70 não pode ser
considerada como uma reprodução pura e simples das estruturas arcaicas. Ela
realizou uma imensa expulsão de milhões de camponeses, agregados aos
latifúndios pela servidão por dívida, libertando-os dessa servidão para poderem
vender livremente sua força de trabalho para o capital industrial, comercial,
de serviços e, também, para o próprio capital agrícola, o agronegócio.
A
manutenção da estrutura arcaica do monopólio da terra, que permite a seu
proprietário, mesmo capitalista, como é o agronegócio, se apropriar da renda
fundiária, foi o pedágio pago pelas demais frações do capital para contarem com
o excedente de força de trabalho necessário para o milagre econômico dos anos
1970. Por não entender a natureza dessa reforma conservadora, que transformou a
maior parte dos latifundiários na fração agrária da classe capitalista, a
teoria social latino-americana comete o erro de não tratar o agronegócio como
capitalismo agrícola, nem seus trabalhadores assalariados como fração agrária
da classe proletária.
Em grande
parte, é essa visão teórica que tem levado a questão da pobreza a funcionar, no
Brasil, como um divisor político no processo de democratização e nas opções de desenvolvimento,
conforme a expressão de Cândido Grzybowski. Segundo ele, o debate sobre o
desenvolvimento brasileiro tem sido dominado pela visão e propostas em relação
ao quanto, como modelo e estratégia, ela é distributivista, e se é capaz ou não
de enfrentar a enorme pobreza e a escandalosa desigualdade. Este seria o debate
entre direita e esquerda que contaria no Brasil.
Assim, ao
invés de redirecionar tal debate para o centro da luta de classes, entre
capital e trabalho, o que preocupa Grzybowski é o fato da questão ambiental não
ter a mesma dimensão da questão social. Reclama que o debate da destruição
ambiental na arena política, quando existe, tende a ser dominado pela questão
da justiça social. Ou seja, ao invés de considerar que a pobreza, a desigualdade,
a má distribuição da renda e a destruição ambiental deveriam ser discutidas e
enfrentadas no contexto da luta de classes de superação do capitalismo, ele
parece se contentar com a discussão da questão ambiental nos limites do
sistema.
Não por acaso,
Nina Madsem acredita que tanto o Estado quanto a pobreza, produzidos em nossa
sociedade, atuam e existem a partir de uma estrutura patriarcal e racista, que
ordena e limita o acesso a direitos, a partir de marcadores do sexo e da cor.
Nessas condições, trazer para o centro do debate a pobreza e o enfrentamento à
pobreza seria, para ela, fundamental para questionar a linha de corte
estabelecida para a definição da “nova classe média”. Ela parece desconsiderar
que, mesmo que parta de uma estrutura patriarcal e racista, a atual estrutura é
capitalista.
Esse
capitalismo com características brasileiras, embora tenha transformado a base
produtiva arcaica, foi incapaz de limpar sua ideologia e sua política dos
ranços patriarcais e racistas. Tais ranços servem a seus interesses de classe.
Rebaixam os salários de mulheres e negros, os mantêm como os principais setores
do exército de reserva e da ralé, e disputam com as populações indígenas, os
quilombolas, os caboclos e os pequenos camponeses a propriedade sobre todas as
terras.
Portanto,
sem trazer para o centro do debate as características próprias do capitalismo
brasileiro, todas as ações para enfrentar e superar a pobreza, o racismo, o
machismo e outras manifestações patriarcais, escravistas e feudais não passarão
de pequenos arranhões na estrutura capitalista e em sua superestrutura. É
evidente que as ações para superar esses problemas podem contribuir para
colocar a nu as contradições capitalistas, mas dificilmente encontrarão solução
se o capital, no estágio de técnico e científico em que se encontra no Brasil,
não for submetido ao papel de simples operador de desenvolvimento das forças
produtivas. Se ele continuar dominando a economia e o Estado, todos os esforços
para superar os ranços arcaicos serão infrutíferos.
Em alguns
momentos, como no longo período de estagnação e predação neoliberal dos anos
1980 e 1990, o capitalismo manteve elevados níveis de miséria e pobreza e levou
ao atrofiamento da classe média, como acentuaram Waldir José de Quadros et. al.
Em tais condições, como frisa Jessé Souza, o que se retira dos dominados
socialmente não são apenas os meios materiais. As classes dominadas são
obrigadas a se verem como inferiores, preguiçosas, menos capazes, menos
inteligentes, menos éticas. Elas não seriam apenas despossuídas dos capitais
que pré-decidem a hierarquia social. Pairaria sobre elas o fantasma de sua
incapacidade de “ser gente” e o estigma de ser “indigno”. Ainda segundo ele, a
maioria das famílias pobres convive com essa sombra e ameaça.
No
entanto, algo idêntico pode ocorrer mesmo quando o quadro sombrio de alto
desemprego e queda sistemática dos rendimentos, como supõe Quadros, for
profundamente modificado por um crescimento econômico mais elevado. Celia Lessa
Kerstenetzky e Christiane Uchôa, por exemplo, mostram que, apesar do
crescimento do emprego e da renda após 2003, os indicadores de educação de
crianças e jovens nos domicílios brasileiros não confirmam o diagnóstico
otimista de inserção dos menos empobrecidos na classe média. Tais indicadores
apontam, de modo particularmente preocupante, para as ainda escassas
oportunidades de realização abertas para os filhos dessas famílias menos
privilegiadas.
Os mais
pobres têm moradias inadequadas, escolaridade insuficiente, acesso limitado a
crédito nas condições habitualmente disponíveis para a classe média, e uso
incipiente de serviços sociais privados. Tudo isso limita o horizonte para o
progresso social, embora tal segmento abocanhe ganhos de renda. Em tais
condições, classificar esse segmento na classe média seria ignorar o fato
ordinário de que a pobreza, assim como a riqueza, é um fenômeno
multidimensional, e de que as linhas de pobreza de renda são definidas muito
frequentemente em função do orçamento público e não das reais necessidades das
famílias.
Um exemplo
dessa situação foi a recente greve dos garis do Rio de Janeiro. Ganhando
salários e adicionais miseráveis, num serviço de alta periculosidade, lutaram
por salários menos miseráveis (mil e duzentos reais mensais), encontrando uma
intransigência abominável por parte da prefeitura. Primeiro, foram chamados de
“grupinho de 300”. A isso se agregaram a pecha de “delinquentes”, a total
negativa de negociar, e a decisão do tribunal do trabalho, que considerou a
greve ilegal.
É verdade
que a população teve que conviver com montanhas de lixo. O que por si só já era
uma demonstração de que os grevistas não eram apenas 300 espartanos enfrentando
os persas. A própria imprensa, que verbalizava acriticamente as informações da
prefeitura, teve de reconhecer que a greve incorporava alguns milhares. Também
ficou evidente que os garis, se tivessem entrado em greve em outro período, não
teriam conseguido chamar a atenção para suas reivindicações. E se não fossem
firmes, combinando a greve com manifestações de rua bem organizadas e de número
crescente de participantes, não teriam obtido as melhorias para atender as
necessidade familiares.
Pode-se
concluir daí que as reais necessidades das famílias, para se reproduzirem,
deveriam ser o critério básico para definir seu custo socialmente necessário.
Talvez esta questão tenha sido o que levou Jessé Souza a definir que a
fronteira entre a ralé e os batalhadores estaria situada precisamente na
possibilidade de incorporação, pelos batalhadores, dos pressupostos para o
aprendizado e o trabalho que faltam à ralé.
Já
criticamos o conceito de batalhadores, utilizado por Jessé Souza, por entender
que há batalhadores em todas as classes sociais. Tal conceito nada diz sobre a
classe real em que tais batalhadores lutam. Além disso, nem toda a ralé é
desprovida de aprendizado e conhecimentos, como qualquer estatística da
população periférica e do sistema prisional pode demonstrar.
O fato de
a maior parte dos empregos dos últimos 10 anos terem sido preenchidos por
forças de trabalho oriundas da ralé, para postos de pequena qualificação
profissional, mostra que aqueles pressupostos apresentam furos diversos. Jessé
aplainou tanto a ralé quanto a classe dos trabalhadores assalariados, sem levar
em conta a rugosidade que essas classes apresentam, contrastando pontos
elevados e profundos, como demonstrou a greve dos garis cariocas.
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