Por Wladimir Pomar
Waldir
José de Quadros et al utilizam a figura de uma estrutura em
camadas para delimitar a situação das classes sociais, colocando os miseráveis,
formados por todas as pessoas ocupadas que recebiam menos que o salário mínimo,
na última camada. Ou seja, ao contrário de Jessé Souza, que coloca os
miseráveis na ralé, Quadros os coloca na classe trabalhadora assalariada de
baixos salários.
O
interessante é que os dois podem estar certos. Com o agravante de que
miseráveis também são, em geral, os pequenos camponeses das regiões Norte,
Nordeste e Centro-Oeste. Portanto, pobres e miseráveis podem fazer parte de
diversas das classes sociais existentes no Brasil.
Para Lúcia
Cortes da Costa, um dado preocupante da PNAD de 2011 foi ter constatado o
aumento do percentual de jovens que não estudam nem trabalham. Sonia Fleury,
por outro lado, relata o fenômeno do desemprego e vulnerabilidade de vínculos
laborais de jovens bem qualificados na crise das economias desenvolvidas.
Segundo ela, isso tem dado origem à emergência de uma nova classe perigosa,
chamada de precariato por G. Standing. De uma forma ou de
outra, causas diferentes causam situações idênticas, colocando massas de
jovens, não-qualificados e qualificados, navegando não como classe, mas como
parte da ralé ou lumpemproletariado.
Eliana
Vicente cita Bomeny para afirmar que o fato de os pobres estarem no mercado
através do consumo não significa que eles se beneficiem do mercado da mesma
forma que aqueles que participam do consumo com regularidade, como seriam os
casos da classe média e da classe alta. Os pobres entrariam nas estatísticas do
consumo de forma preponderante, mas possuiriam um baixo capital cultural no que
diz respeito ao mercado de trabalho competitivo. Falta-lhes educação regular e
continuada, cultura e profissionalização, sendo esses os principais entraves na
questão da mobilidade social no Brasil.
Embora,
como já vimos, tudo isso tenha um quê de verdade, o chamado baixo capital
culturalnão está entre os principais entraves para a mobilidade social, no
sentido ascensional, no Brasil e em outros países. O precariato, citado por
Fleury e Standing, possui o tal capital cultural, mas isso não o tem protegido
contra a tendência de mobilidade social do assalariamento para a ralé. E no
processo de crescimento proporcionado pelas políticas de transferência de renda
e de valorização do salário mínimo, não foram os de maior educação, cultura e
profissionalização os primeiros a serem aproveitados no mercado de trabalho.
Apenas num segundo momento, com a expansão da indústria da construção civil e
dos serviços mais qualificados, aquela suposta vantagem competitiva se fez
presente.
As lógicas
do desenvolvimento capitalista não são tão geometricamente retilíneas como
eventualmente se pode pensar.
É isso que
faz com que a classe trabalhadora assalariada, que move os meios de produção,
circulação e distribuição de propriedade alheia, seja formada por camadas que
estão longe de parecer um bolo bem arrumado. É possível encontrar, em seu
interior, trabalhadores qualificados de colarinho branco, percebendo altos
salários e altas bonificações. Isso pode fazê-los sonhar que são de classe
média (em geral têm horror ao termo pequena-burguesia). Ou pode mesmo lhes dar
a oportunidade de mover-se para essa classe, ou mais alto ainda, ao acumular
recursos monetários e transformá-los em capital. No outro extremo, é possível
encontrar trabalhadores, qualificados ou não, percebendo salário mínimo, ou
menos ainda, numa situação tão pobre ou miserável quanto maior for o tamanho de
sua família.
Algo
idêntico ocorre com a própria classe média proprietária de pequenos meios de
produção. A concorrência capitalista ameaça constantemente sua presença no
mercado, tornando obsoletos seus produtos, da mesma forma que torna obsoletas
várias qualificações profissionais de trabalhadores assalariados. Não é tão
raro como possa parecer que pequenos industriais, pequenos comerciantes ou
pequenos camponeses se vejam, de um momento para outro, obrigados a procurar
empregos assalariados, ou mesmo desabem na ralé.
Um caso
conhecido no Brasil é o dos boias-frias, que migravam de suas pequenas glebas
em Minas e na Bahia para a colheita da cana em São Paulo, trabalhando como
assalariados num trabalho exaustivo, na expectativa de manter sua condição de
pequenos proprietários agrícolas. A obrigação legal de mecanização da colheita
da cana dará fim a essa ambiguidade social, talvez levando grande parte dos
pequenos camponeses que momentaneamente trabalhavam como boias-frias a
abandonarem suas terras e migrarem para as cidades, na busca de trabalho
assalariado, que podem ou não encontrar.
Isso
mostra o quanto a luta contra a pobreza e a miséria, se for genérica e não
levar em conta a situação real de classe dos pobres e miseráveis, tende a ter
efeitos limitados no tempo e no espaço. Mesmo nos limites do sistema capitalista,
a luta contra a pobreza e a miséria precisa levar em conta a situação, as
condições e os interesses das classes realmente existentes na sociedade
brasileira.
Tomemos,
por exemplo, a ralé. Ela compreende uma massa imensa de bolsões diferenciados,
cuja totalidade e especificidades em geral não entram nas estatísticas. Os
pesquisadores não têm segurança de investigar em profundidade as regiões e
zonas periféricas em que essa massa mora e vive.
Para
reduzi-la, ao ponto de isolar as frações que ingressaram no banditismo, será
preciso combinar o fornecimento de bolsas-família, não só com intensa
escolarização e qualificação profissional de jovens e adultos. Será preciso,
ainda, gerar crescimento econômico e empregos com salários competitivos em
relação ao banditismo, assim como modificar radicalmente as condições
degradantes em que vivem, resolvendo os problemas de saneamento básico,
mobilidade urbana e saúde.
Em relação
à fração que mergulhou no banditismo, quase nada poderá ser feito se não
houver uma reforma judiciária e prisional séria, na qual a educação, a
qualificação profissional e o trabalho passem a ser os principais instrumentos
de ressocialização. O atual sistema judicial e prisional é um complexo produtor
e realimentador do banditismo.
Algo
idêntico é verdade em relação à classe dos trabalhadores assalariados. Sem a
reconstrução industrial, que combine a formação de grandes e médias empresas de
tecnologias da terceira revolução científica e tecnológica, com a presença de
pequenas e médias empresas da segunda e da primeira revolução tecnológica, o
país continuará patinando na geração de altos valores agregados. Ou seja, será
incapaz de aproveitar plenamente a atual força de trabalho existente no país. É
lógico que aqui, como em relação à ralé, a escolarização e a qualificação
profissional também desempenham papel chave.
Já em
relação aos quatro a cinco milhões de pequenos proprietários rurais, a luta
contra sua pobreza e/ou miséria tem outras características. Ela também inclui a
escolarização e a qualificação profissional, porém não tem como objetivo
transformá-los em trabalhadores assalariados com bons salários. Objetiva
promover sua ascensão de pequena-burguesia rural pobre em pequena-burguesia
rural mediana e abastada, capaz de enfrentar a ofensiva do agronegócio pelo
domínio de todas as terras. O que também demanda uma ação específica do Estado,
seja creditícia, seja agronômica, industrial e comercial.
Dizendo de
outro modo, a luta contra a pobreza e a miséria terá resultados limitados se
for focada. Ela, para ter sucesso, precisa ter como arcabouço principal a
luta pelo desenvolvimento econômico, social e ambiental. É o que, na prática,
Márcio Pochmann quis dizer em relação à mudança na repartição geográfica da
riqueza mundial. O declínio na participação dos países da OCDE, de 75% em 1990,
para 44% em 2010, foi acompanhado da queda da taxa de miseráveis no mundo. Tal
taxa, de 42% de toda a população do planeta, em 1990, caiu para menos de 25% no
início da segunda década do século 21.
Isto é, o
deslocamento da riqueza no mundo parece ocorrer simultaneamente à redução da
parcela da população que vive diariamente com até USD 1,25. Pochmann conclui
daí que essa mudança tenderia a convergir na redivisão internacional da classe
média. Portanto, ele parece não haver percebido que esse deslocamento aponta
para os países que aproveitaram a crise de lucratividade dos países
capitalistas desenvolvidos para industrializar-se e para seguir um caminho de
desenvolvimento autônomo, mesmo ainda comportando a participação capitalista.
E que,
embora a redivisão internacional da classe média tenha de fato ocorrido, com
grande parte dela deslizando para a classe dos trabalhadores assalariados, a
mudança mais significativa consistiu no renascimento da fração operária ou
industrial do proletariado, que fora dada como morta ou extinta durante o
predomínio neoliberal.
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