quinta-feira, 20 de março de 2014

Classes e luta de classes: ainda miséria e pobreza

Por Wladimir Pomar    

Waldir José de Quadros et al utilizam a figura de uma estrutura em camadas para delimitar a situação das classes sociais, colocando os miseráveis, formados por todas as pessoas ocupadas que recebiam menos que o salário mínimo, na última camada. Ou seja, ao contrário de Jessé Souza, que coloca os miseráveis na ralé, Quadros os coloca na classe trabalhadora assalariada de baixos salários.

O interessante é que os dois podem estar certos. Com o agravante de que miseráveis também são, em geral, os pequenos camponeses das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Portanto, pobres e miseráveis podem fazer parte de diversas das classes sociais existentes no Brasil.

Para Lúcia Cortes da Costa, um dado preocupante da PNAD de 2011 foi ter constatado o aumento do percentual de jovens que não estudam nem trabalham. Sonia Fleury, por outro lado, relata o fenômeno do desemprego e vulnerabilidade de vínculos laborais de jovens bem qualificados na crise das economias desenvolvidas. Segundo ela, isso tem dado origem à emergência de uma nova classe perigosa, chamada de precariato por G. Standing. De uma forma ou de outra, causas diferentes causam situações idênticas, colocando massas de jovens, não-qualificados e qualificados, navegando não como classe, mas como parte da ralé ou lumpemproletariado.

Eliana Vicente cita Bomeny para afirmar que o fato de os pobres estarem no mercado através do consumo não significa que eles se beneficiem do mercado da mesma forma que aqueles que participam do consumo com regularidade, como seriam os casos da classe média e da classe alta. Os pobres entrariam nas estatísticas do consumo de forma preponderante, mas possuiriam um baixo capital cultural no que diz respeito ao mercado de trabalho competitivo. Falta-lhes educação regular e continuada, cultura e profissionalização, sendo esses os principais entraves na questão da mobilidade social no Brasil.

Embora, como já vimos, tudo isso tenha um quê de verdade, o chamado baixo capital culturalnão está entre os principais entraves para a mobilidade social, no sentido ascensional, no Brasil e em outros países. O precariato, citado por Fleury e Standing, possui o tal capital cultural, mas isso não o tem protegido contra a tendência de mobilidade social do assalariamento para a ralé. E no processo de crescimento proporcionado pelas políticas de transferência de renda e de valorização do salário mínimo, não foram os de maior educação, cultura e profissionalização os primeiros a serem aproveitados no mercado de trabalho. Apenas num segundo momento, com a expansão da indústria da construção civil e dos serviços mais qualificados, aquela suposta vantagem competitiva se fez presente.

As lógicas do desenvolvimento capitalista não são tão geometricamente retilíneas como eventualmente se pode pensar.

É isso que faz com que a classe trabalhadora assalariada, que move os meios de produção, circulação e distribuição de propriedade alheia, seja formada por camadas que estão longe de parecer um bolo bem arrumado. É possível encontrar, em seu interior, trabalhadores qualificados de colarinho branco, percebendo altos salários e altas bonificações. Isso pode fazê-los sonhar que são de classe média (em geral têm horror ao termo pequena-burguesia). Ou pode mesmo lhes dar a oportunidade de mover-se para essa classe, ou mais alto ainda, ao acumular recursos monetários e transformá-los em capital. No outro extremo, é possível encontrar trabalhadores, qualificados ou não, percebendo salário mínimo, ou menos ainda, numa situação tão pobre ou miserável quanto maior for o tamanho de sua família.
Algo idêntico ocorre com a própria classe média proprietária de pequenos meios de produção. A concorrência capitalista ameaça constantemente sua presença no mercado, tornando obsoletos seus produtos, da mesma forma que torna obsoletas várias qualificações profissionais de trabalhadores assalariados. Não é tão raro como possa parecer que pequenos industriais, pequenos comerciantes ou pequenos camponeses se vejam, de um momento para outro, obrigados a procurar empregos assalariados, ou mesmo desabem na ralé.

Um caso conhecido no Brasil é o dos boias-frias, que migravam de suas pequenas glebas em Minas e na Bahia para a colheita da cana em São Paulo, trabalhando como assalariados num trabalho exaustivo, na expectativa de manter sua condição de pequenos proprietários agrícolas. A obrigação legal de mecanização da colheita da cana dará fim a essa ambiguidade social, talvez levando grande parte dos pequenos camponeses que momentaneamente trabalhavam como boias-frias a abandonarem suas terras e migrarem para as cidades, na busca de trabalho assalariado, que podem ou não encontrar.

Isso mostra o quanto a luta contra a pobreza e a miséria, se for genérica e não levar em conta a situação real de classe dos pobres e miseráveis, tende a ter efeitos limitados no tempo e no espaço. Mesmo nos limites do sistema capitalista, a luta contra a pobreza e a miséria precisa levar em conta a situação, as condições e os interesses das classes realmente existentes na sociedade brasileira.

Tomemos, por exemplo, a ralé. Ela compreende uma massa imensa de bolsões diferenciados, cuja totalidade e especificidades em geral não entram nas estatísticas. Os pesquisadores não têm segurança de investigar em profundidade as regiões e zonas periféricas em que essa massa mora e vive.

Para reduzi-la, ao ponto de isolar as frações que ingressaram no banditismo, será preciso combinar o fornecimento de bolsas-família, não só com intensa escolarização e qualificação profissional de jovens e adultos. Será preciso, ainda, gerar crescimento econômico e empregos com salários competitivos em relação ao banditismo, assim como modificar radicalmente as condições degradantes em que vivem, resolvendo os problemas de saneamento básico, mobilidade urbana e saúde.

Em relação à fração que mergulhou  no banditismo, quase nada poderá ser feito se não houver uma reforma judiciária e prisional séria, na qual a educação, a qualificação profissional e o trabalho passem a ser os principais instrumentos de ressocialização. O atual sistema judicial e prisional é um complexo produtor e realimentador do banditismo.

Algo idêntico é verdade em relação à classe dos trabalhadores assalariados. Sem a reconstrução industrial, que combine a formação de grandes e médias empresas de tecnologias da terceira revolução científica e tecnológica, com a presença de pequenas e médias empresas da segunda e da primeira revolução tecnológica, o país continuará patinando na geração de altos valores agregados. Ou seja, será incapaz de aproveitar plenamente a atual força de trabalho existente no país. É lógico que aqui, como em relação à ralé, a escolarização e a qualificação profissional também desempenham papel chave.

Já em relação aos quatro a cinco milhões de pequenos proprietários rurais, a luta contra sua pobreza e/ou miséria tem outras características. Ela também inclui a escolarização e a qualificação profissional, porém não tem como objetivo transformá-los em trabalhadores assalariados com bons salários. Objetiva promover sua ascensão de pequena-burguesia rural pobre em pequena-burguesia rural mediana e abastada, capaz de enfrentar a ofensiva do agronegócio pelo domínio de todas as terras. O que também demanda uma ação específica do Estado, seja creditícia, seja agronômica, industrial e comercial.

Dizendo de outro modo, a luta contra a pobreza e a miséria terá resultados limitados se for focada. Ela, para ter sucesso, precisa ter como arcabouço  principal a luta pelo desenvolvimento econômico, social e ambiental. É o que, na prática, Márcio Pochmann quis dizer em relação à mudança na repartição geográfica da riqueza mundial. O declínio na participação dos países da OCDE, de 75% em 1990, para 44% em 2010, foi acompanhado da queda da taxa de miseráveis no mundo. Tal taxa, de 42% de toda a população do planeta, em 1990, caiu para menos de 25% no início da segunda década do século 21.

Isto é, o deslocamento da riqueza no mundo parece ocorrer simultaneamente à redução da parcela da população que vive diariamente com até USD 1,25. Pochmann conclui daí que essa mudança tenderia a convergir na redivisão internacional da classe média. Portanto, ele parece não haver percebido que esse deslocamento aponta para os países que aproveitaram a crise de lucratividade dos países capitalistas desenvolvidos para industrializar-se e para seguir um caminho de desenvolvimento autônomo, mesmo ainda comportando a participação capitalista.

E que, embora a redivisão internacional da classe média tenha de fato ocorrido, com grande parte dela deslizando para a classe dos trabalhadores assalariados, a mudança mais significativa consistiu no renascimento da fração operária ou industrial do proletariado, que fora dada como morta ou extinta durante o predomínio neoliberal.


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