In memoriam de João Baptista Franco Drummond
(1942-1976)
Apesar de quase cinco décadas já haverem se passado, ainda existem aspectos a
ser esclarecidos sobre a participação da mídia no golpe de 1º de abril de 1964.
Que os principais grupos empresarias do setor apoiaram e articularam a
deposição do presidente João Goulart está suficientemente documentado. Que eles
conclamaram os militares a intervir na ruptura do processo democrático, idem
[cf. nesta Carta Maior,
“A
grande mídia e o golpe de 64”].
Uma questão intrigante, todavia, permanece: quais
justificativas eram utilizadas pela própria mídia para contornar a evidente
contradição existente entre o seu discurso em “defesa da democracia” e, ao
mesmo tempo, a articulação e a pregação abertas de um golpe de estado contra o
presidente da República democraticamente eleito?
Essa questão torna-se mais interessante quando, ao estudá-la, constatamos que o
discurso justificador utilizado naquele período continua a ser utilizado ainda
hoje e, em alguns casos, pelos mesmos grupos de mídia na defesa de seus velhos
interesses.
“A Rede da Democracia”
Várias dissertações e teses acadêmicas têm estudado os vínculos da mídia com o
golpe de 1964. Boa parte delas, no entanto, se mantém anônimas nas prateleiras
das bibliotecas universitárias. Um desses trabalhos, uma pesquisa de
pós-doutorado, foi transformada em livro lançado há cerca de um ano. Trata-se
de “A Rede da Democracia – O Globo, O Jornal e Jornal do Brasil na queda do
governo Goulart (1961-64)”, co-edição da NitPress e Editora da UFF, do
historiador e cientista político Aluysio Castelo de Carvalho.
“A Rede da Democracia” foi uma cadeia de emissoras de radio idealizada pelo
então deputado federal (à época, do extinto Partido Social Democrático) e
vice-presidente dos Diários Associados, João Calmon (1916-1999), criada em
outubro de 1963, comandada pelas rádios Tupi, Globo e Jornal do Brasil e
retransmitida por centenas de emissoras em todo o país. Diariamente políticos,
empresários, militares, jornalistas, intelectuais, sindicalistas, estudantes –
articulados com partidos e entidades de oposição (IPES e IBAD) – faziam
oposição aberta ao governo e se constituíam em espaço de articulação discursiva
na conspiração que se formava para derrubada de Goulart, até as vésperas do 1º
de abril. Os pronunciamentos veiculados na “rede” eram, em seguida, publicados
nos respectivos jornais dos grupos empresariais de mídia.
A inspiração para a criação da “rede”, segundo Carvalho, parece ter vindo do
livro de Suzanne Labin, “Em Cima da Hora – A conquista sem guerra” (original
“II est moins cinq”), lançado no Brasil em 1963 (Distribuidora Record, Rio de
Janeiro), com tradução, prefácio e notas do jornalista, então governador do
estado da Guanabara, Carlos Lacerda (1914-1977).
A francesa Suzanne Labin (1913-2001), militante internacional do anticomunismo,
escreveu dezenas de livros e folhetos, traduzidos em vários idiomas, que
tiveram ampla distribuição como material da luta ideológica no tempo da guerra
fria. No Brasil, além do “Em cima da hora”, foram também publicados títulos
como “A Rússia de Stalin”, “O Duelo Rússia x EUA”, “A Condição Humana na China”
e “A Guerra Política”.
No Prefácio do livro, Lacerda afirma tratar-se de “um guia no meio da confusão,
um antídoto para o veneno da inércia, um roteiro contra o sofisma. Possam lê-lo
os que ensinam os outros a ler” (p. 15). No texto, Labin sugere a fundação de
uma “Liga da Liberdade” cuja primeira tarefa seria “recuperar a imprensa”. Para
isso recomenda “a formação de uma rede de imprensa diária e periódica de
tiragem suficientemente ampla, expressamente dedicada à desintoxicação dos
espíritos” (p. 135). Além disso, diz ela, “a Liga não deve limitar-se à
imprensa. Deve utilizar todos os outros meios de expressão, desde logo as
revistas, panfletos e livros. (...) deverá também produzir filmes” (p. 136).
Na verdade, “A Rede da Democracia” brasileira, coordenada pelos principais
grupos de mídia do Rio de Janeiro, servia a propósitos políticos específicos
que se concretizariam em abril de 1964.
Concepção “publicista” da opinião pública
Carvalho parte de uma visão panorâmica do papel central atribuído à “opinião
pública” por alguns dos pensadores clássicos da democracia representativa
liberal – Hobbes, Locke, Montesquieu, Constant – dentre outros. No Brasil, Rui
Barbosa e Oliveira Vianna atribuíram “às elites dirigentes responsáveis o papel
de intérprete dos interesses da nação” e também colocaram “a imprensa em
primeiro plano, enfatizando sua posição central como órgão da opinião pública”
(p. 29).
A principal hipótese de Carvalho é a de que, para fugir da contradição acima
apontada, os jornais cariocas estudados abandonaram a concepção institucional
de representatividade da opinião pública – aquela que se materializa através
dos partidos, de eleições regulares e de representantes políticos – e
recorreram a outra concepção – a publicista – que “ressalta a existência da
imprensa como condição para a publicização das diversas opiniões individuais
que constituem o público”.
A adoção da concepção publicista faz com que não só a crítica aos partidos
políticos e ao Congresso se justifique, como também sustenta a posição de que
os jornais são os legítimos representantes da opinião publica.
A partir da análise de pronunciamentos feitos na Rede da Democracia e de
editoriais dos jornais, Carvalho afirma:
“Ocorreu por parte (de O Globo, O Jornal e Jornal do Brasil) uma exaltação
da própria imprensa como modelo de instituição representativa da opinião
pública, porque se viram mais comprometidos com a preservação da ordem social
liberal. Os jornais cariocas construíram uma imagem positiva da imprensa, em
detrimento da divulgada sobre o Congresso. (...) Os jornais se consideravam o
espaço público ideal para a argumentação, em contraposição à retórica dita
populista e comunista que teria se expandido no governo Goulart e estaria
comprometida com a desestruturação das instituições, sobretudo do Congresso. Os
jornais se colocaram na posição de porta-vozes autorizados e representativos de
todos os setores sociais comprometidos com uma opinião que preservasse os
tradicionais valores da sociedade brasileira ancorados na defesa da liberdade e
da propriedade privada” (p. 156).
Entre os
inúmeros pronunciamentos e editoriais analisados, merece destaque o publicado
em O Jornal [2 de março de 1962] que toma como referência a relação entre
sociedade e sistema político existente nos Estados Unidos e evoca dois
clássicos liberais, Tocqueville e Lord Bryce. Diz o editorial:
“Ninguém ignora quanto o governo americano é sensível à opinião pública e se
deixa conduzir por suas reações. Congresso e Poder Executivo não ousam nunca
contrariá-la, temendo republicanos e democratas os seus pronunciamentos nas
urnas. Os grandes autores clássicos na apreciação do sistema político
norte-americano – De Tocqueville e Lorde Bryce – mostraram como, apesar do
regime presidencialista submeter-se à inflexibilidade dos mandatos e por isso
parecer menos maleável aos efeitos das variações da opinião, como sucede nos
parlamentarismos europeus, nos Estados Unidos os governos condicionam
invariavelmente as suas decisões aos resultados da auscultação da vontade e do
sentimento do povo, rigorosamente traduzidos pela imprensa” (citado em
Carvalho, p. 159).
Mídia e a “opinião pública” hoje
A “concepção publicista”, apresentada por Carvalho, foi um fenômeno reduzido à
articulação do golpe de 1964 pelos principais jornais cariocas ou corresponde a
uma postura permanente da grande mídia brasileira?
Relembro, todavia, um episódio, no mínimo, curioso. No auge da crise que
envolveu o Senado Federal em 2009 e em meio às pressões para sua renúncia,
falando por ocasião do Dia Internacional da Democracia, o Senador José Sarney
afirmou:
"A tecnologia levou os instrumentos de comunicação a tal nível que,
hoje, a grande discussão que se trava é justamente esta: quem representa o
povo? Diz a mídia: somos nós; e dizemos nós, representantes do povo: somos nós.
É por essa contradição que existe hoje, um contra o outro, que, de certo modo,
a mídia passou a ser uma inimiga das instituições representativas. Isso não se
discute aqui; estou repetindo aquilo que, no mundo inteiro, hoje, se
discute"(cf. Sarney
vs. Imprensa: Quem mudou: o senador ou a grande mídia?).
Quarenta e cinco anos depois do golpe de 1964, em 2009, um de seus principais
apoiadores e, ele próprio, proprietário de jornal e concessionário do serviço
público de radiodifusão, questiona a mesma “concepção publicista” de que a
mídia se valeu para justificar sua posição golpista.
Dois anos mais tarde, em 2011, é necessário que as devidas lições sejam
aprendidas. Estudar e conhecer melhor os vínculos dos grupos de mídia com a
articulação golpista do início da década de 60, além de ser nosso dever para
com aqueles que tombaram pelo caminho, pode nos ajudar – e muito – a
compreender o que ainda ocorre na democracia brasileira de nossos dias.
Diretoria do
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