Por Atílio Boron
Começaram no último dia 21 de janeiro, uma quarta-feira, no Palácio das Convenções de Havana as conversas para normalizar as relações diplomáticas entre os Estados Unidos e Cuba, dando assim cumprimento ao anúncio feito conjuntamente pelos presidentes Barack Obama e Raúl Castro no último dia 17 de dezembro. Na quinta-feira, a subsecretaria de Estado para o hemisfério ocidental Roberta Jacobson se incorporou à reunião. Com sua chegada, a agenda temática foi ampliada consideravelmente, dando lugar a uma expressiva lista de assuntos pendentes, produto de longas décadas de confrontações.
O início destes intercâmbios será apenas o primeiro passo de um longo e difícil trajeto, repleto de ciladas. Há aqueles dentro e fora de Cuba que sustentam que o reatamento das relações diplomáticas colocará em perigo a continuidade da Revolução ao abrir a ilha às esmagadoras influências econômicas, políticas e ideológicas do império.
Mas se equivocam: primeiro porque aquele efeito já se faz sentir e sob suas formas mais perversas. Ou será que o bloqueio não exerce uma influência crucial e enormemente perniciosa sobre a economia cubana? A condição insular de Cuba, por outro lado, não a deixa a salvo das nefastas influências das correntes políticas e ideológicas prevalecentes no país do norte ou na Europa, ou das modas de diversos tipos, da música à literatura, passando pelos gostos estéticos, estilos de vida, indumentária e o cuidado pessoal.
E se equivocam também porque, se há algo que com certeza pode causar danos irreparáveis à Revolução Cubana, este algo é a prolongação indefinida do bloqueio, sobretudo tendo em mente o lento e inexorável desaparecimento dos cubanos que nasceram pouco antes ou nos primeiros anos da Revolução e o inegável choque geracional que, mais cedo do que tarde, será levado a cabo em seu núcleo dirigente.
É necessário recordar que a fortaleza da Revolução Cubana não está enraizada em sua economia, mas em sua cultura e política; e que, se ela resistiu à desintegração da União Soviética e a mais de meio século de bloqueio, não foi graças à saúde de sua economia, senão pela formidável solidez de uma tradição político-ideológica que funde suas raízes na guerra da independência contra a Espanha, no luminoso magistério de Martí e na extraordinária obra político-pedagógica de Fidel.
Para resumir: não se trata de minimizar o dano realizado pelo bloqueio mais prolongado de que se tenha notícia na história universal, e sem o qual as conquistas da Revolução teriam sido ainda menores do que foram. Se agora Washington está disposto a pôr fim ao bloqueio é porque resultou ser uma faca de dois gumes: na tentativa de asfixiar Cuba, acabou atiçando as contradições no interior dos Estados Unidos entre crescentes segmentos da população e grupos empresariais que rechaçavam essa política, e enfrentavam os “falcões-galinha,” – como os denomina Juan Gelman –, a máfia de Miami, espécie que afortunadamente já está batendo em humilhante retirada.
Enfrentavam também, até época recentes, o retrógrado establishment militar e a “comunidade de inteligência”, por razões que, como veremos mais abaixo, perderam vigência na conjuntura geopolítica atual. Ademais, para cúmulo de males, o bloqueio não serviu, como reconheceram Obama e o secretário de Estado John Kerry, para dificultar as relações de Washington com seus cada vez mais rebeldes vizinhos do sul e, inclusive, com os países europeus afetados, como recentemente ocorreu com França e Alemanha, pelas absurdas sanções econômicas de uma legislação extraterritorial como a Lei Helms-Burton, projetada para prejudicar Cuba, mas que produz significativos “danos colaterais” na economia de outros países.
Talvez tenha sido obra da “astúcia da razão” invocada por Hegel, mas o certo é que, se o bloqueio foi concebido como uma forma de isolar Cuba, quem terminou isolado foram os Estados Unidos. E quem teve que aceitar se sentar à mesa de negociações foi Washington, apesar de haver rechaçado este convite enviado pelo governo cubano durante meio século. Não é um dado que mereça menos atenção o fato que as pesquisas de opinião pública nos Estados Unidos confirmem que dois de cada três norte-americanos estão a favor da suspensão do bloqueio e da normalização das relações com a ilha rebelde.
Políticas migratórias e fomento à deserção de médicos cubanos
A iminente abertura de embaixadas em ambos países será o primeiro passo para pôr fim ao bloqueio. Seria mundialmente ridículo se os Estados Unidos estabelecessem relações diplomáticas com um país, o que supõe sujeitar-se ao que foi estipulado na Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas em um marco de igualdade jurídica e respeito pela soberania das partes, e ao mesmo tempo mantivesse uma política agressiva destinada a derrubar o governo com o qual se está negociando a normalização de suas relações.
A agenda inclui numerosos itens bastante litigiosos, alguns dos quais mencionaremos aqui: o tema migratório é um deles, o qual requeria revogar a absurda legislação estadunidense sobre o tema. Acreditamos não estar equivocados quando dizemos que os Estados Unidos são o único país do mundo que tem não uma, senão duas políticas migratórias: uma, exclusiva para Cuba – regida pela Lei de Ajuste Cubano e pela política “pés secos, pés molhados” – e outra para o resto dos países. Mediante a primeira, reprime-se a migração legal aos EUA, criando tensões para o governo cubano, ao passo que perversamente se estimula a imigração ilegal, concedendo moradia, visto de trabalho e todas as franquias imagináveis a quem chega em suas praias.
A outra política se aplica a todos os países, que, no caso dos imigrantes centro-americanos, mexicanos e caribenhos, é de uma extrema crueldade: não apenas não os recebem nos EUA como aos cubanos, como os perseguem como bestas ferozes. Se mexicanos, caribenhos e centro-americanos chegam a entrar nos Estados Unidos, quando descobertos, logo os deportam sem mais contemplações. Se ao longo da história 223 pessoas caíram em suas tentativas de cruzar o muro de Berlin (1961-1989), na fronteira que separa o México dos Estados Unidos foram registrados, nos últimos quinze anos, 5600 mortes pela mesma causa.
Para piorar ainda mais as coisas, o governo de George W. Bush pôs em vigor, no ano 2006, uma série de regulamentações destinadas a fomentar a deserção dos médicos e trabalhadores da saúde cubanos que estivessem no exterior, em sua grande maioria em países muito pobres nos quais a atenção médica é um privilégio disponível para poucos. Pese sua calculada má fé, o plano foi um fracasso, pois foi ínfimo o número daqueles que caíram nessa armadilha. Quase todos os trabalhadores da saúde seguiram firmes nos seus postos, fiéis ao nobre internacionalismo da Revolução Cubana. Todos esses assuntos que permeiam a política migratória dos Estados Unidos deverão ser submetidos a uma drástica revisão nas conversas em curso.
Bloqueio econômico e a exclusão da Ilha da lista negra de patrocinadores do terrorismo
Outro tema urgente é a eliminação de Cuba da lista de países que patrocinam o terrorismo, e que ano após ano é publicada pelo Departamento de Estado. A inclusão de Cuba nesta lista é uma manobra inqualificável porque este foi um país que combateu o terrorismo como muito poucos e, por outro lado, um dos que mais sofreram por causa deste flagelo desde os primeiros dias da Revolução. Por haver lutado contra esta peste em sua toca na Flórida, cinco de seus filhos purgaram longos anos de injusta prisão nos EUA.
Não deixa de ser uma cruel ironia que quem elabora pontualmente esta “lista negra” seja, a juízo de alguns ilustres como Noam Chomsky, o governo de um país que, com o passar do tempo, se converteu no principal terrorista do planeta e santuário e refúgio de criminosos como Orlando Bosch, Luis Posada Carriles e tantos outros apanhados e protegidos como importantes figuras do establishment norte-americano. Manter Cuba nessa lista não é só uma infâmia, senão ainda um fator que dificulta enormemente as relações econômicas internacionais de Havana, já que a submete a inúmeras restrições que se somam às originadas pelo bloqueio.
Outro dos assuntos que deverá estar na mesa de discussões é o dos passos a serem dados para começar a desarticular as políticas e regulamentações que configuram o bloqueio, e a Casa Branca tem atribuições de fazê-lo, tendo em vista a revogação da Lei Helms-Burton, votada no Congresso em 1966. Tal como demonstrou Salim Lamrani em um artigo recente, o presidente Obama pode tomar algumas iniciativas que, na prática, relaxem consideravelmente os efeitos asfixiantes do bloqueio. Terá que trabalhar para revogar aquela lei, mas, entretanto, há muito mais que se possa fazer (1).
Bastaria, como anota Lamrani, que seja levantada a proibição existente para que os estadunidenses viajem a Cuba como turistas ordinários para derramar importantes benefícios e estímulos econômicos sobre grandes setores da população vinculada, direta ou indiretamente, com o turismo. Tão absurda é a postura atual de Washington que, enquanto pesa essa proibição de viajar a Cuba, qualquer cidadão dos Estados Unidos pode visitar a Coréia do Norte e, nem digamos, China e Vietnã sem qualquer obstáculo. Se o levantamento dessa restrição é acompanhado com uma política de permitir maiores aquisições de produtos cubanos, como tabaco e rum, por exemplo, os efeitos benignos seriam ainda maiores.
Teremos que ver se Obama possui as guelras necessárias para encarar essa tarefa, mas pressões internas para pôr fim ao bloqueio, procedentes do mundo empresarial e, sobretudo, da “comunidade de inteligência” e do Pentágono, não lhe faltam. Ademais, seria inconcebível manter o bloqueio com um país vizinho com o qual se pretende normalizar as relações e que tem uma comunidade de imigrantes de quase três milhões de pessoas concentradas na Flórida. Um mínimo de coerência obriga a acabar com o bloqueio sem mais demora.
Segundo o reacionário senador republicano Marco Rubio, Washington deveria incluir na discussão com os cubanos a compensação pelas propriedades ou empresas dos Estados Unidos nacionalizadas nos primeiros anos da Revolução.
Se tal coisa chegar a acontecer, Cuba poderia responder exigindo uma compensação infinitamente maior como reparação por meio século de ataques, agressões, destruição de propriedades, perda de vidas humanas; outro tanto pela invasão da praia Girón e suas conseqüências; e, antes, pela ocupação e usurpação do território de Guantánamo. Em todo caso, como se desprende desta sucinta enumeração, a agenda do diálogo cubano-estadunidense promete ser bem controversa.
Libertação de presos políticos
Ao anunciar sua viagem, Roberta Jacobson disse que na quarta-feira (21 de janeiro) tomaria café da manhã com representantes dos dissidentes e dos supostos “presos políticos” cubanos e logo após daria uma coletiva para a imprensa. Um árduo trabalho espera pelos representantes de Cuba na segunda rodada de conversas, que presumivelmente se realizaria nos Estados Unidos, quando, em reciprocidade com o gesto insolente e intervencionista de Jacobson, pediriam para tomar café também eles com os representantes dos 474 presos políticos de que se tem registro no país do norte (exceto os 5 heróis cubanos recentemente libertados), além de muitos outros que todavia ainda não foram identificados como tal.
Esta lista inclui 122 presos políticos que ainda hoje continuam algemados em Guantánamo, violando todas as normas que os garantiriam um processo legal; os mais de duzentos prisioneiros dos povos originários da América do Norte e dos quais jamais se fala; o caso escandaloso do patriota porto-riquenho Oscar López Rivera, recluso há mais de trinta anos em penitenciárias de segurança máxima pelo crime de lutar pela independência de seu belo país; o soldado Bradley Manning, junto a outros dois que Washington arde em desejos de capturar: Julian Assange e Edward Snowden, devido à revelação das sinistras maquinações e crimes que perpetra o imperialismo para subjugar os povos e nações de todo o mundo (2).
O quê se esconde atrás por trás da instalação de embaixadas?
Para concluir: as negociações não serão fáceis, mas nada o é no mundo da política. Convém lembrar, contudo, que Washington tem mais urgência do que Havana para avançar pelo caminho da normalização das relações, e não por razões humanitárias, altruístas ou por respeito à legalidade internacional. Em sua audiência de confirmação diante do Comitê de Relações Exteriores do Senado dos Estados Unidos em 2011, a senhora Jacobson disse algo cujo profundo significado muito poucos souberam interpretar, mas que agora se torna evidente: “As embaixadas estadunidenses não são um presente para os demais países. Além das funções consulares e outras, uma embaixada também pode manter observação próxima sobre os regimes acusados de medidas severas contra os direitos humanos”.
Jacobson expressou subliminarmente a grave preocupação da “comunidade de inteligência” yankee e do Pentágono em não contar com um adequado posto de observação na maior das Antilhas, com projeção sobre todo o mar do Caribe. Isto, em momentos em que, nos documentos oficiais da CIA, da NSA e do Pentágono, aparecem como os inimigos a serem contidos e possivelmente derrotados a China, Rússia, Cuba e a bacia do Grande Caribe.
Nada melhor do que uma embaixada para desempenhar essas “outras” funções, às quais aludia sutilmente Jacobson: a espionagem sobre as atividades de países inimigos e o estímulo para o surgimento de atores e forças sociais que poderiam se converter em protagonistas da tão ansiada “mudança de regime” em Cuba. Objetivo ao qual Washington jamais renunciará e que estrelará, como tantas vezes no passado, ao lado da vontade revolucionária do povo cubano.
Uma oportuna coincidência tensiona a importância desta dimensão geopolítica oculta sob o discurso da normalização diplomática e migratória: um dia antes de começarem estas conversas entre Cuba e os Estados Unidos, atracava no porto de Havana o “Viktor Leonov,” um navio de inteligência da Marinha de Guerra da Rússia dotado das mais aperfeiçoadas tecnologias de vigilância e monitoramento eletrônico. Como dizia Martí, na política, o mais importante é o que não se vê, ou não se fala.
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