Por Frei Betto
Carnaval significa "festa da carne". Outrora, uma festa religiosa. Às vésperas da Quaresma, diante da perspectiva de passar quarenta dias em abstinência de carne, os primeiros cristãos fartavam-se de assados e frituras entre o domingo e a terça-feira “gorda".
Na quarta, revestiam-se de cinzas, evocando que do pó viemos e para o pó voltaremos, e ingressavam no período em que a Igreja celebra a paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo.
A modernidade secularizou a cultura e, de certo modo, esvaziou o significado das festas religiosas, hoje apreendido apenas por cristãos vinculados à comunidade eclesial.
Com certeza ganhou a autonomia da razão e perdeu a consistência da subjetividade. No Natal, trocou-se São Nicolau, que no século V distribuiu sua herança aos pobres, pela figura consumista de Papai Noel. O Carnaval transformou-se em festa da carne em outro sentido. E fez-se da Semana Santa um período extra de férias.
Essa mercantilização dos ritos de passagem torna-se mais evidente nesse momento em que a humanidade enfrenta a crise de paradigmas. Enquanto todos se perguntam pelo sentido da vida, o neoliberalismo procura nos incutir que viver é consumir e que “fora do mercado não há salvação”.
Derrubado o Muro de Berlim e constatado o fracasso crônico do neoliberalismo para implantar justiça social, globaliza-se a emergência espiritual. Parafraseando Rimbaud, há uma grande "gula de Deus", que favorece o encontro, afinal, da mística oriental com a doutrina cristã ocidental, introduz a new age e a gnose de Princeton, mas também abre campo aos mercenários da salvação que pregam de olho na cobiça, convencidos de que "no princípio era a verba..."
A Quarta-Feira de Cinzas instiga-nos a refletir sobre esta experiência inelutável: a morte. O processo massificador da modernidade tende a tornar descartáveis também os ritos de passagem que se sobrepõem às esferas religiosas, como o nascimento, o casamento e a morte. Outrora, morria-se em casa e, contra a vontade do poeta, havia choro, vela e fita amarela.
A evocação da morte incomoda porque remete ao sentido da vida. Só assume morrer quem imprime à vida um sentido altruísta, que transcende a sua existência individual. Fora disso, a morte é brutal sonegação da vida.
O Carnaval é celebração da vida quando festejado como comunhão de alegria. É o momento de ruptura das formalidades, de inversão de papéis sociais e expressão da utopia de uma sociedade em que estarão erradicadas todas as barreiras sociais, raciais e étnicas.
O Carnaval é também propício ao aprofundamento da fé, quando se aproveita o tríduo de Momo para um encontro mais íntimo com Deus, longe das batucadas, dos bailes e dos desfiles alegóricos.
Deixar à alma desfilar por suas profundezas, ao ritmo do silêncio, conduz à apoteose.
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