Por Wladimir Pomar
Claudio Katz, economista argentino e investigador do CONICET, publicou um texto com o interessante título de “Imaginários Socialistas”. Segundo ele, “o socialismo reapareceu na América Latina em quatro projetos de futuro”. Na Venezuela, adotando o “enunciado centenário” de “socialismo do século XXI”. Na Bolívia, assumindo o perfil singular de “socialismo comunitário”. Em Cuba, atualizando-se como “renovação socialista”. E, na ALBA, como “formulação continental” de “socialismo latino-americano”. Em todos os casos o horizonte de longo prazo estaria sendo combinado com “propostas nacionais (ou regionais) imediatas”.
Apesar de sua introdução instigadora, Katz se pergunta “o que significa o socialismo? Qual o balanço de suas experiências? Como volta a se apresentar neste momento?” Ele próprio responde que o socialismo se converteu num grande movimento popular no final do século 19, quando “encarnou o antigo sentimento de emancipação social” de os oprimidos construírem “uma sociedade de igualdade e justiça”. Seus “partidários consequentes” teriam se confrontado “abertamente com o capitalismo” e adotado “um perfil revolucionário” ao compreenderem que “este sistema não pode ser reformado, nem humanizado”. O socialismo se definiria, então, por “oposição ao capitalismo”, “antítese de um regime que funciona acrescentando os sofrimentos populares, as tensões bélicas e a destruição do meio ambiente”.
Para ser franco, tal definição tem o defeito de ser parcial. O “antigo sentimento de emancipação social” dos oprimidos, e sua visão de “igualdade e justiça” variaram muito, sendo diferentes em cada momento da história. Em cada um desses momentos, “os partidários consequentes” desses ideais se confrontaram, abertamente ou não, com o modo de produção historicamente dominante. Espártaco se bateu contra o escravismo romano para retornar ao comunismo primitivo da Trácia. Os “diggers” ou “cavadores” ingleses, mais de mil anos depois, pretenderam criar um sistema comunitário contra o feudalismo no momento em que o capitalismo dava seus primeiros passos como sistema econômico e social.
Por outro lado, não foi o socialismo, mas sim o comunismo, que se converteu em grande movimento popular no final do século 19, dando surgimento ao Manifesto do Partido Comunista e à Internacional dos Trabalhadores. Nessa ocasião, o socialismo era um movimento utópico que procurava humanizar o capitalismo através do cooperativismo (Robert Owen e Fourier) e da educação (Saint Simon). Apesar disso, tendo em vista a necessidade de conquistar os setores intermediários da sociedade na luta contra o capitalismo, o socialismo se transformou em bandeira de luta dos partidos operários e socialdemocratas, cuja matriz era comunista.
Portanto, o comunismo e o socialismo surgiram como oposição ou antítese do capitalismo, como afirma Katz. Mas eles surgiram também como resultado do desenvolvimento do próprio capitalismo. E não só porque o sistema capitalista funciona causando sofrimentos, guerras e destruições ambientais. Mas, principalmente, porque em seu desenvolvimento histórico o capitalismo tende a criar uma contradição antagônica entre o elevado desenvolvimento social das forças produtivas e a apropriação privada das riquezas geradas pelo trabalho humano. Sem tal desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo o socialismo tende a ser apenas uma utopia sem condições materiais de realizar-se.
A condição básica para o desenvolvimento de uma sociedade socialista e, mais adiante, de uma sociedade comunista, reside no desenvolvimento das forças produtivas, na capacidade da sociedade produzir os meios para atender às necessidades físicas, ambientais, culturais e científicas de todos os seus membros. O que exige transformar a propriedade privada capitalista dos meios de produção em propriedade social, administrada pelo conjunto da sociedade. O socialismo se define, então, como oposição e antítese da propriedade privada capitalista, mas em concordância com o aproveitamento do patrimônio técnico e científico gestado pelo capitalismo.
Nesse sentido, o projeto socialista não se limita a “gestar uma sociedade sem opressores nem oprimidos”, ou a liquidar a exploração dos trabalhadores, como supõe Katz. Mesmo porque o socialismo não conseguirá “reverter a desigualdade que recria um sistema assentado na competição para incrementar o lucro”, nem “erradicar progressivamente uma rivalidade que socava a convivência humana”, se não tiver as condições materiais de suprir as necessidades de todos os seus membros. Para chegar ao socialismo é preciso ter passado pelo capitalismo, apesar dos sonhos de bordejar ou evitar essa necessidade histórica.
Numa sociedade de escassez e pobreza, mesmo que sobre ela seja estendido o manto socialista, acabarão por se reproduzir os “dramáticos choques entre distintos grupos da sociedade”, como demonstraram as experiências socialistas onde as forças produtivas eram atrasadas. Tais sociedades podem estar baseadas em “regimes econômicos de maior participação da propriedade pública e de sistemas políticos de crescente autoadministração popular”, mas sucumbirão se as forças produtivas forem incapazes de atender às necessidades de toda a população.
Ao contrário do que pensa Katz, o que Marx percebeu como antecipação na Comuna de Paris não foi a infraestrutura socialista, mas sua superestrutura política. E o que Marx supôs emergir na Europa foi a revolução comunista, tendo em conta o desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo nessa região do globo. Mas Marx não viveu o suficiente para ver a evolução do capitalismo em imperialismo. Isto é, não pode acompanhar a disputa feroz pela exploração das colônias e semicolônias, travada pelas potências capitalistas desenvolvidas. Exploração que lhes permitiu arrancar lucros extraordinários do sistema colonial e semicolonial e redistribuir parte deles entre seus operários para minar suas lutas de classe.
Com a evolução de alguns países capitalistas para o patamar imperialista ocorreu o deslocamento do epicentro da luta de classes. Antes fincado no interior dos países capitalistas desenvolvidos, esse epicentro migrou para as disputas entre os países imperialistas e para o interior das colônias e semicolônias, de desenvolvimento capitalista atrasado, ou sem desenvolvimento capitalista. Além disso, os povos desses países assistiram também à migração dos pensamentos contraditórios, liberais e outros, forjados nos países desenvolvidos. Esses deslocamentos modificaram a premissa, defendida por Marx, de as revoluções ocorrerem primeiro nos países capitalistas onde as forças produtivas eram mais avançadas e onde a classe dos trabalhadores assalariados era mais numerosa.
Abriu-se uma era que seria marcada por guerras imperialistas e revoluções nos elos mais fracos do sistema mundial. Na China, em 1900 e em 1911; nas Filipinas, em 1901; na Rússia, em 1905; no México, a partir de 1910; na Nicarágua, desde 1912; e na Albânia, em 1913. Entre 1914 e 1918 ocorreu não só a primeira guerra mundial, mas também as rebeliões dos irlandeses contra o império britânico e dos árabes contra o império otomano. As primeiras revoluções a assumirem um caráter socialista foram a russa, em 1917, e a húngara e alemã, em 1918 e 1919. Depois disso, os coreanos se levantaram contra o Japão, os indianos contra o colonizador britânico, e os chineses contra o múltiplo domínio dos países estrangeiros.
Nos anos 1920, somalis, mongóis, iraquianos, marroquinos, egípcios e turcos levantaram-se contra seus dominadores estrangeiros, enquanto na China tinha início a primeira guerra civil revolucionária. A influência socialista nessas lutas resultou, como reação, em sua falsificação pelos fascistas italianos e pelos nazistas alemães. Eles capitanearam a disputa por uma nova redivisão imperialista do mundo e o desencadeamento da segunda guerra mundial. Mas as consequências desta, como na primeira, foram a expansão socialista em países periféricos da Europa Oriental, o desencadeamento da Guerra Fria, a revolução na China, o empate de forças na guerra da Coréia, a disseminação das guerras e revoluções de libertação nacional e descolonização na África e na Ásia, e a implantação do socialismo em Cuba, Vietnã, Birmânia, Etiópia e Somália, entre 1950 e 1970. Ou seja, o epicentro da luta de classes se manteve na periferia do sistema central capitalista durante todo o século 20.
Katz chama a atenção para o fato de que tudo isso pareceu aterrorizar as classes burguesas e fazê-las oferecer “concessões sociais inéditas” com o estado de bem-estar. Nos anos 1970 e 1980, os “emblemas do socialismo” teriam sido tão populares que se tornou “impossível computar o número de partidos e movimentos que se reivindicavam essa denominação”. No entanto, é preciso frisar que, nessas décadas, o estado de bem-estar ficou circunscrito a alguns países europeus, enquanto no resto do mundo ocorria uma repressão feroz contra qualquer tentativa socialista, ou mesmo democrático-burguesa. Calcula-se que no golpe anticomunista da Indonésia foram assassinadas mais de 700 mil pessoas.
Na América Latina, os anos 1970 foram de expansão de ditaduras terroristas por toda parte. O mesmo ocorreu na África e na Ásia. O bloqueio econômico, político e militar contra a China perdurou até 1972. A guerra de libertação do Vietnã só terminou em 1975. Reivindicar a condição de socialista em muitos países do mundo era o mesmo que procurar sarna para se coçar, ou querer ser preso e torturado.
A impossibilidade de computar o número de partidos e movimentos que se denominavam socialistas era apenas a expressão imediata da perplexidade com que os combatentes socialistas se confrontavam diante do desafio de desenvolver as forças produtivas em países que sequer haviam avançado na primeira revolução industrial capitalista. Perplexidade que permanece ainda hoje, seja em virtude da bancarrota soviética e da “renovação socialista” na China e no Vietnã, anterior à cubana, seja com aquilo que Katz chama de “projetos de futuro” na América Latina.
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