Editorial Correio da Cidadania 02/10/2014
Após meses de intensa propaganda eleitoral e o dispêndio estimado de R$ 1 bilhão nas três principais campanhas presidenciais, o primeiro turno do pleito de 2014 chega ao término sem que nenhum dos problemas fundamentais da população tenha sido objeto de uma discussão séria. Assim, depois de meses de programas eleitorais pirotécnicos, um rosário de promessas fantasiosas, muito blábláblá e alguns debates que mais parecem gincanas de esperteza e concurso de tiradas espirituosas - a maioria chula e de mau gosto -, o brasileiro vai às urnas no escuro.
Não obstante o sentimento generalizado de grande insatisfação com o status quo e a crescente evidência de que os problemas econômicos, sociais, políticos e ambientais se agravam dia a dia, o eleitor decidirá seu voto sem ter tido a oportunidade de conhecer minimamente o posicionamento dos candidatos sobre questões decisivas para o destino da Brasil. Não foi por falta de recursos para financiar a comunicação com a população. Além das despesas das campanhas presidenciais, o Tribunal Eleitoral calcula que o gasto dos milhares de candidatos a cargo eletivos nas eleições alcançará a inacreditável cifra de R$ 73 bilhões.
A lista de questões que permaneceram no limbo seria interminável, mas alguns exemplos bastam para ilustrar a importância do que não foi discutido.
Por que o parque industrial brasileiro está sendo desmantelado? Qual a relação entre a desindustrialização e o avanço do agronegócio e da mineração? Como enfrentar as forças desestabilizadoras que deixam a vida nacional à mercê dos humores do capital internacional e de seus sócios internos? O neodesenvolvimentismo conseguiu cumprir a promessa, tantas vezes repetidas, de crescimento autossustentado? A crise internacional é mesmo uma marolinha? Que papel a nova divisão internacional do trabalho reserva ao Brasil?
É possível compatibilizar a cópia dos estilos de vida e padrões de consumo das economias centrais com a diminuição das desigualdades sociais? Qual a causa estrutural da pobreza? O que deve ser feito para vencê-la? Como resolver o flagelo do homem pobre que vive no campo? Como gerar empregos estáveis e bem remunerados para o trabalhador brasileiro? Como defender os povos indígenas do avanço das madeireiras, agronegócio, hidroelétricas e mineradoras? O capitalismo brasileiro pode prescindir da superexploração do trabalho e da depredação da natureza?
Por que a população pobre é sistematicamente empurrada para regiões cada vez mais longínquas e abandonas das grandes cidades? É possível conciliar a fome de lucro das grandes empreiteiras com uma política consistente de combate ao déficit habitacional? Como desvencilhar as políticas urbanas dos interesses do capital mercantil urbano e subordinar a cidade às necessidades de quem nela vive? Para além de soluções a conta-gotas baseadas na expansão gradual de faixas exclusivas para ônibus e de programas residuais de abertura de ciclovias em grandes cidades, como resolver de fato o problema da mobilidade urbana que atormenta diariamente milhões de brasileiros?
Qual o volume de recursos necessários para que o setor público possa cumprir sua obrigação de fornecer serviços gratuitos e de boa qualidade em educação, saúde, transporte, saneamento básico, moradia, segurança pública, cultura, lazer etc.? Como obtê-los? A reforma tributária apregoada pelos neoliberais de plantão contempla essa discussão? A que interesses ela serve? Quais as consequências sociais da Lei de Responsabilidade Fiscal? É razoável gastar com pagamento de juros da dívida pública praticamente o mesmo que se gasta com educação e saúde?
Como enfrentar o problema do atraso econômico e social do Nordeste? Qual a alternativa social e ambientalmente construtiva para o desenvolvimento da região Norte? Por que existe “guerra fiscal”? Como resolver a crise federativa que deixa todas as regiões do Brasil a reboque da burguesia paulista?
Qual o custo econômico, social e ambiental do modelo energético brasileiro? A quem ele interessa? Qual a estratégia de exploração dos recursos minerais brasileiros? Como será distribuído e utilizado o excedente econômico gerado pela exploração do Pré-Sal?
O que bloqueia a universalização dos serviços de saneamento básico? Quais são as forças econômicas responsáveis pela devastação da Amazônia? Por que o Estado é omisso e conivente com o crime ambiental? Para além da crença em São Pedro, qual a causa estrutural do problema da água em São Paulo? Existe alguma relação entre a estiagem no Sudeste e a devastação da floresta amazônica?
Qual a relação entre “metas inflacionárias” e penúria de recursos para políticas públicas? Existe um horizonte para o fim da política de austeridade fiscal que mina a capacidade de gasto do setor público? A quem o BNDES serve? Qual o balanço da política de privatização? As PPPs melhoraram os serviços públicos? Os bancos cumprem a sua função social precípua de financiar os investimentos? Qual o custo e as implicações da crescente entrada de capital estrangeiro no Brasil? A população está consciente de que a nova rodada de reformas liberais exigida pelo capital internacional implica nova ofensiva sobre os direitos dos trabalhadores?
Qual o objetivo da política educacional do Brasil? Os professores estão bem capacitados e remunerados? Como explicar a contradição entre a sistemática melhoria dos indicadores de eficiência do sistema educacional e a evidente indigência da educação dos jovens? É correto subordinar o ensino à lógica da decoreba do vestibular?
O que deve ser feito para que a universidade brasileira deixe de ser uma mera correia de transmissão do colonialismo cultural difundido das economias centrais? Como democratizar o acesso à universidade pública? As universidades privadas têm contribuído para o desenvolvimento da pesquisa no Brasil? O Estado deve transferir recursos públicos para as universidades privadas? O Brasil possui um sistema nacional de pesquisa científica à altura dos desafios históricos gerados pela revolução algorítmica?
Qual a política de saúde preventiva do Estado brasileiro? Os centros de pesquisa sobre saúde pública têm recebido os recursos necessários para operar adequadamente? É possível compatibilizar o SUS com a medicina privada? O sistema previdenciário garante uma vida digna para o idoso brasileiro? Por que o aborto é um problema de saúde pública? O que tem sido feito para resolver efetiva e definitivamente o déficit de assistência médica para a população carente?
O que explica a crise de representatividade que abala a democracia brasileira? Existe relação entre a fábula gasta nas campanhas e a corrupção da política? O que explica a incapacidade endêmica da sociedade brasileira para separar o espaço público do espaço privado? Por que o interesse público não é incorporado à razão de Estado? O que está por trás da criminalização da luta social?
Qual o balanço das políticas de “pacificação” das favelas? O estado de exceção militar como forma de relacionamento dos aparelhos repressivos do Estado com a população pobre não é uma forma ultra-autoritária de conviver com a segregação social? Quem bloqueia a desmilitarização da PM? Não teremos mais outros Amarildos? Qual a relação entre crime organizado, milícias, aparelho policial e judicial do Estado, bancada parlamentar da “bala” e cúpula do poder político brasileiro?
O legado anti-social, antinacional e antidemocrático da ditadura militar foi superado? Qual a relação dos problemas econômicos, sociais e culturais do presente com o padrão de desenvolvimento capitalista da época da ditadura do grande capital? Até quando a sociedade terá de esperar para conhecer a verdade e penalizar os culpados pelos desmandos feitos por militares, civis e empresários durante a ditadura militar?
Por que o racismo contra o negro permanece como um tabu que não pode ser discutido? Qual a razão da escalada de intolerância contra os homossexuais? O que está por trás da epidemia de seitas autoritárias que se alimentam no mais primitivo e mercantilizado fundamentalismo religioso? Por que a justiça brasileira não funciona para o pobre? Quem se beneficia com a impunidade nos crimes de colarinho branco? É razoável uma sociedade que registra mais de 100 mil mortes violentas por ano – quase o dobro do número de americanos mortos na Guerra do Vietnã? Como deter a escalada da barbárie?
O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil? O Brasil não está mais submetido a pressões imperialistas? É uma Nação independente que controla o seu destino? Qual o balanço da atuação do Brasil no Haiti? Por que o Brasil não se pronuncia em relação ao pedido de asilo político de Snowden? Por que não protesta contra a arbitrária retenção de Assange no Reino Unido? Além de esperneio, o que foi feito para evitar a espionagem descarada do Estado norte-americano? Mudou alguma coisa?
A ordem global cumpriu a promessa de um mundo melhor? Vivemos numa “aldeia global” ou estamos imersos numa ordem econômica internacional baseada no “salve-se quem puder”? Existe alternativa à ordem neoliberal ou vivemos de fato o fim da história? Existem bases objetivas e subjetivas para sonhar com um retorno do Estado de Bem-Estar social? É realista imaginá-lo na periferia do sistema capitalista mundial?
É possível resolver qualquer um dos problemas fundamentais do Brasil sem transformações de grande envergadura que envolvem todas as dimensões da sociedade? É realista imaginar grandes mudanças sem luta de classes? Como enfrentar as forças políticas, internas e externas, comprometidas com a continuidade da dependência e do subdesenvolvimento? Qual a correlação de forças necessária para vencer as forças sociais e políticas comprometidas com a reprodução da segregação social e da dependência? Qual a aliança de classe capaz de construir tal correlação de forças? A democracia brasileira é permeável à emergência do povo na história? Existe a possibilidade de resolver os problemas fundamentais do povo sem questionar a ordem do capital?
Por que os problemas que levaram milhões de jovens às ruas em Junho de 2013 não foram incorporados ao debate eleitoral? A quem beneficia priorizar as exigências dos negócios e simplesmente ignorar a questão da igualdade substantiva? Quem ganha com o debate que parte da premissa de que é fundamental acatar as exigências do capital internacional e não lutar pela a autonomia nacional? Quem define o que deve ser discutido no espaço público? Por que os partidos contra a ordem – PSOL, PSTU e PCB – foram sistemática e institucionalmente estigmatizados e marginalizados do debate nacional? Por que a democratização da mídia, sob o controle de um punhado de famílias, não faz parte da discussão política brasileira? Os donos da comunicação estão acima da política? A quem interessa a perpetuação do analfabetismo político? O leitor pode acrescentar muitas outras questões.
Quando os problemas fundamentais da sociedade não podem ser debatidos, a política é reduzida a um jogo de camuflagem de tenebrosas transações, desconstrução dos adversários, acusações lançadas ao léu, fofoca, vaidade, apelos emocionais, mesquinharia e pura e simples prestidigitação e ilusionismo. No chafurdar da politicagem, vale tudo, menos a crítica. Alienada, a população fica sem meios para discernir seus interesses estratégicos e a forma de alcançá-los.
Ao circunscrever o debate eleitoral a picuinhas, problemas técnicos e aspectos institucionais secundários, a plutocracia bloqueia a discussão sobre a conveniência de manter a ordem estabelecida. Sem a possibilidade de questionar os parâmetros da ordem e discutir os problemas substantivos de quem vive do próprio trabalho, a eleição fica reduzida a uma única e exclusiva função: selecionar a camarilha que ficará encarregada de administrar os negócios da colônia no próximo período. Nessas circunstâncias, qualquer que seja o resultado, a plutocracia brasileira e a grande burguesia internacional são, de antemão, os grandes vencedores das eleições de 2014.
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