Flávio Aguiar
A primeira
coisa a fazer para ser de esquerda é postular que existe uma esquerda. A ideia
pode parecer tautológica, mas não é.
O que vou
escrever visa complementar o que nosso companheiro Emir Sader expôs no seu
blog, nesta página, sobre o que é ser de esquerda.
É uma
questão complexa, que metodoloigamente dividi em três capítulos: (I) O que é
ser de esquerda, o que envolve questões conceituais; (II) como ser de esquerda,
o que implica considerações sobre tática e estratégia; (III) para que ser de
esquerda, o que sugere a discussão sobre meios, fins, e contra-fins, isto é,
aquilo que é necessário rejeitar para ser de esquerda.
Comecemos
pelo começo, isto é, as questões conceituais.
A primeira
coisa a fazer para ser de esquerda é, portanto, postular que existe uma
esquerda. A ideia pode parecer tautológica, mas não é. Porque é isto que está
em questão. Para existir uma esquerda, é necessário que exista uma direita. E a
direita se auto-nega sistematicamente: se aquela é a questão, este é o nó da
questão: a esquerda tem diante de si um inimigo que elude (ilude)
constantemente sua existência.
Para a
direita, negar a existência da esquerda é uma afirmação tática para encobrir,
acobertar, a sua própria existência. Estaremos diante da tática do lobo na pele
do cordeiro? Em parte. Porque em parte não se trata disto, mas se trata de uma
questão ontológica: como a direita não quer mais se apresentar como um partido,
ou uma seção (secção também) da sociedade, só lhe resta se apresentar como
abarcando o significado – os signifcantes (mídia) de toda a sociedade. Ou seja,
estamos diante do paradoxo de que, para afirmar ou manter ou defender a sua
pretensão à hegemonia na praxis e do pensamento, temos uma corrente social que
deve negar sua existência e apresentar-se como aquilo que ela não é: a
expressão de valores universais.
A esquerda
precisa, portanto, concentrar-se na sua própria maneira de ser, e de se apresentar,
diante e depois das crises por que passou, com a derrota ou o fracasso dos
regimes que eram ou se apresentavam como seus. O primeiro passo para ser de
esquerda, portanto, é refluir sobre seus próprios passos, e pensar o que
aconteceu, para que os erros, os equívocos, as fantasmagorias do passado não
voltem a cegar a visão do horizonte. Isto não garante que não venham a sobrevir
novos erros, equívocos, novas fantasmagorias, Trata-se apenas de pensar que não
sejam os mesmos.
Então vamos
ao principal deles. Postulando que haja uma esquerda, é necessário logo a
seguir negar esta tese, ou melhor, realocar o peso das palavras. Trata-se de
afirmar que existe uma esquerda, onde esta palavra é um substantivo e aquela um
artigo indefinido. Não se trata de afirmar que exista uma esquerda, onde aquela
palavra é um numeral e esta um mero adjetivo da unidade. Ou seja, postular que há uma esquerda
significa postular que existem esquerdas, que ela é plural, e que nenhuma das
correntes que nela convivem é a dona da verdade absoluta e que, portanto, nada
justifica que umas e outras andem enfiando as próprias picaretas nas cabeças de
outras e umas, até porque isto significa facilitar a ascensão dos picaretas em
seu próprio seio.
Em termos
de metodologia e conceituação, isto significa trocar o debate em que muitas
vezes a esquerda se envolveu sobre se a democracia é uma valor universal ou
não, por outra formulação. O debate sobre democracia como valor universal se
prendeu, em geral, à ideia da afirmação/negação de um tipo de democracia – a
representativa de inspiração liberal – como sendo a democracia por excelência.
A prática
não é bem assim, está demonstrado. Existe a democracia participativa – de que
os orçamentos que levam este nome são um exemplo recente – e existe também a democracia direta, a das ruas, das praças,
das manifestações, que tem seu espaço e seu próprio protocolo, complicado às
vezes por irrupções de violência – seja da repressão ou dos que querem se valer
da oportunidade para promover quebra-quebras pseudamente anarquistas.
A questão é
a de se buscar a construção da democracia como um valor permanente, isto é, a
ser buscado em cada instância de um movimento e do conjunto dos movimentos da
sociedade. Vamos reconhecer: não pensávamos assim, na maioria, décadas atrás.
Para muitosa democracia e suas formalidades – fosse na aura representativa, na
esfera participativa ou na linearidade das praças e ruas ocupadas – eram apenas
passos táticos até que se atingisse o estágio da ditadura do proletariado,
confundida com a ditadura das vanguardas do proletariado, concepção que
facilitou o caminho para a emergência da ditadura das burocracias, que já nada
tinham a ver com o proletariado.
É claro que
há situações-limite e mesmo fora de qualquer limite. Não dá para comparar a
situação de uma lua na clandestinidade, por exemplo, com esta que vivemos hoje
em que há um respeito, mesmo que limitado, por princípios eleitorais, de
representatividade, de participação e até mesmo de ação direta, com todas as
ressalvas que haja. Dentro do reconhecimento das diferenças, o que importa,
para uma práxis de esquerda, é a afirmação do direito à diferença. A começar,
portanto, por suas diferenças.
É difícil?
É.
Mas não é
impossível. A prática o tem demonstrado. Voltaremos ao assunto, na semana que
vem.
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