Por Emir Sader
Lenin
gostava de repetir que o poder corrompe e o poder absoluto corrompe
absolutamente. Corrompe material e espiritualmente.
A afirmação:
“Quer conhecer uma pessoa? Dá-lhe poder, para ver a força do seu
caráter” vale para entender comportamentos na esfera da política nacional, mas
também em outros marcos institucionais.
Gente que pregou sempre a socialização do poder, as
direções coletivas, a construção de consensos mediante a discussão democrática
e a persuasão, criticou sempre a violência verbal, a ofensa, o maltrato às
pessoas – de repente vê um cargo de poder cair no seu colo, revela falta de caráter, renega tudo o que
aparentemente defendia, se encanta pelo poder e se torna um déspota.
O poder lhes sobe à cabeça e lhes invade a alma.
Todas as frustrações e os complexos de inferioridade acumulados por não ter
méritos para um protagonismo de primeiro plano, de repente irrompem sob a forma
da prepotência, da arbitrariedade, da concentração brutal do poder, de mal
trato das pessoas, do uso do poder das
formas mais arbitrarias possíveis.
Tem gente que se humaniza ainda mais quando assume
funções públicas, aumenta sua modéstia, suas formas humanas de relação com as
pessoas. Tem outras em quem o poder bota pra fora o que de pior estavam
acumulando. Se transtornam, tornam-se monstros, que acreditam que o poder é um
porrete, de que fazem uso a torto e a direito, contra todos.
Não conseguem conviver com pessoas que acreditam
que lhes fazem sombra. Tem complexo de inferioridade, então acreditam que os
outros o desprezam, não o levam a sério, não lhe reconhecem os méritos que
acreditam ter.
Tem uma visão instrumental do poder, tanto assim
que se desesperam quando se defrontam com pessoas que tem seu poder na moral,
na legitimidade política, na capacidade intelectual – de que eles não dispõem -
que não se vergam diante de ameaças, diante do poder do decreto, da
arbitrariedade. Diante dessas pessoas, perdem o equilíbrio, se sentem pequenos,
impotentes, desprezados.
Não conseguem conviver com a diferença. Diante de
divergências, buscam fazer com que desemboquem na ruptura, valendo-se do poder
formal dos decretos, das punições, da exigência de retratações formais. Não tem
estrutura psicológica para conviver com as diferenças, para buscar coesão entre
diferentes. Logo descambam para a violência, verbal e dos decretos.
Usam os espaços institucionais que detêm como se
fossem propriedade sua, dispõem das pessoas, das coisas, dos recursos, como se
fossem patrimônio pessoal. Fazem do cargo que tem, uma propriedade pessoal,
desqualificando completamente o caráter publico que a instituição deveria ter.
Como sabem que tem um poder ocasional, pequeno,
vivem depressivos, buscam esconder-se através de falsas euforias, mas que lhes
tiram o sono, a calma.
Tratam mal a
todos a seu redor, fazem deles submissos, em lugar de ajudá-los a desabrochar,
como outros lhe permitiram sair do anonimato e galgar posições.
Vivem cercados de subalternos, cinzentos,
temerosos. Todos acumulando rancor e ódio contra ele, sonhando todo dia com a
sua morte, a sua desaparição mágica e súbita. Sonham que ele desapareça, tanto
o rancor e a humilhação que acumulam e sofrem. Ninguém gosta desse tipo de
gente, o temem, o odeiam, o desprezam caladamente.
É uma gente medíocre, mas que tem uma ânsia
profunda do poder. Como é profundamente inseguro, precisa da adulação, por isso
vive e nomeia incondicionais para cercá-lo. De quem cobra palavras de adulação
a cada tanto.
Como compensação do complexo de inferioridade que
tem.
Alimentam o acesso ao poder durante 10, 20 anos.
Quando chegam, se afogam com o poder, o transformam em poder absoluto. Quando
deviam se realizar, se frustram, ficam menores, deprimidos, precocemente
decadentes. O que deveria ser o ápice, é o fim.
Fazem o teatro de um suposto desapego ao poder, de
dedicação não sei quantas horas ao dia às tarefas mais duras – e cinzentas -,
mas se apegam ao poder como sua alma. Já não podem viver sem ele e suas
prebendas.
Quando vai terminando o tempo desse poder, ficam desesperados,
porque não conseguem mais viver sem esse poder, sem se dar conta que esse
poderzinho é uma porcaria, um nada. E porque todos fora dali, que não dependem
dele, lhe tem um imensa e generalizada rejeição, que é o que o espera quando
não possa mais se proteger com as prebendas do poderzinho que tem hoje. Vão ser
reduzidos às suas devidas proporções, de mediocridade e anonimato.
Porque o poder forte é o poder legítimo, fundado no
convencimento, na ética, no reconhecimento livre dos outros, que ele não
conhece. Porque esse tipo de burocrata
tem uma visão pré-gramsciana, acha que o poder é a violência, a força, a
prepotência. Que pode levá-lo pra casa no bolso ou debaixo do braço.
Pobres diabos, devorados irreversivelmente pela
mediocridade, pelas mentiras com que tentam sobreviver – mentem, mentem,
mentem, desesperadamente -, em guerra contra os outros e em guerra consigo
mesmos.
Lenin gostava de repetir que “O poder corrompe e o
poder absoluto corrompe absolutamente”. Corrompe material e espiritualmente.
Esses burocratas, corrompidos pelo poder, são
discricionários, prepotentes, cobram dos outros, mas não permitem que cobrem
dele. Cobram economia alheia, contanto que ninguém cobre seus desperdícios. Não
agem com transparência, escondem seus passos e suas intenções.
Não amam, não sabem amar, nunca amaram. Gostam de
si, tentam sobreviver, mal e mal, sem amor.
Reduzem tudo ao administrativo, porque não sabem
pensar, tem terror a ter que se enfrentar a uma realidade que tivessem que
decifrar, a argumentos que desnudassem sua falta de razões, suas
arbitrariedades. Não sabem argumentar, não conseguem justificar as decisões
absurdas que tomam, então vivem no isolamento, e no pequeno circulo cinzento
dos que dependem dele. Fogem da discussão, da confrontação de argumentos, que é
o que mais temem. Tentam reduzir tudo a prazos, normas, estatutos, punições,
ameaças, promoções, expulsões. São burocratas perfeitos, idiotizados pela
ativismo, que não podem parar, senão teriam que pensar e isso é fatal para eles.
Eles não entendem onde se meteram, deglutidos pela
atividade meio – seu habitat, como burocratas que são, por natureza – não
compreendem o que fazem, até mesmo porque é incompreensível, reduzidos às
cascas formais de um conteúdo que lhes escapa, porque sua cabeça obtusa não
lhes permite captar o que os rodeia, que eles pretendem aprisionar mediante
decretos.
Se desumanizam totalmente pelo exercício frio da
administração, que creem que é poder. São solitários, vivem fechados,
os amigos se distanciam, perdem a confiança neles primeiro, o respeito depois.
Pensam que dominam tudo, com seus cronogramas e
convênios, mas não controlam nada. Tudo acontece a seu redor, sem que eles
saibam. Vivem num mundo vazio, que não podem parar, para não se dar conta que é
vazio. Pulam no abismo para seu fim.
Não conseguem pensar-se a si mesmo sem esse
poderzinho. Tentam perpetuar-se, pela inércia, porque fora desse lugar não são
nada. Ali também não são nada, mas se enganam, se iludem, que são. Apodrecem no
exercício das funções burocráticas e ai morrem.
São personagens que terminam como o canalha do
Nelson Rodrigues: solitários, sem ninguém, agarrados ao único que lhe resta: a
caneta e escrivaninha.
Os burocratas morrem em vida, afogados pela sua
mediocridade. Passam pelo cargos sem pena, nem glória, esquecidos e desprezados
por todos. Saem menores do que entraram. Se dão conta aí que já não serão nada
na vida.
Essa a vida e a morte dos burocratas. A vida segue,
feliz, sem eles.
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