Por Flávio Aguiar
A pedra
fundamental do ser de esquerda, seu como e seu para que, é a valorização
republicana da cidadania, da ação coletiva, do espaço público, e da governança do Estado e de seu papel
Quando os
regimes comunistas da União Soviética e seus satélites se dissolveram, ao invés
do tão longamente esperado “homo sovieticus”, emergiram naquele espaço
desconstruído algumas das piores máfias do planeta, oligarcas desabusados que
apenas o neo-czarismo autoritário de Vladimir Putin pode enfrentar, um
catolicismo ou uma ortodoxia bizantina rançosos e carolas, políticos e
políticas entusiasticamente neoliberais ou de extrema-direita... Enfim a lista
de dsarrazoados é enorme, mostrando o quanto os regimes comunistas daquela
região não conseguiram construir a democracia socialmente avançada que o
capitalismo triunfante não só negou historicamente, mas passou a negar ainda
com mais veemência nos primeiros anos da orgia neoliberal.
Sintetizando, pode-se considerar que as repúblicas socialistas tinham muito
pouco, ou quase nada, de republicanas, o que roeu pela base a sustentação das
políticas sociais que conseguiram promover, e turvaram a visão das suas grandes
conquistas históricas, como a derrota do nazi-fascismo e a ajuda à sustentação
de lutas de libertação no mundo, no Sudeste Asiático, na África e até na
América Latina. Uma expressão dramática desta falta de “espírito republicano”
foi a tragédia do Muro de Berlim, que, se cercava o lado Ocidental, deixava
desde sempre a impressão de que os prisioneiros do cerco estavam do outro lado,
o Oriental.
Por aí pode ter-se juma primeira medida de que hoje – estamos falando neste
aqui e agora do século XXI em seu começo – a pedra fundamental do ser de
esquerda – seu “como” e seu “para que” é a valorização republicana da
cidadania, da ação coletiva, do espaço público, e da governança do Estado e de
seu papel, tudo aquilo que a ideologia à solta do império dos mercados,
embalada por sua vitória sobre o comunismo soviético, continua e vai continuar
negando, pisoteando a cidadania, o espírito de coletividade, manietando o
espaço público e buscando a privatização completa da governança do Estado,
fazendo-a administradora de privilégios ao invés de garantidora de direitos.
Isto implica a valorização da democracia como um valor permanente, em todas as
suas dimensões, sem perder de vista nenhuma em detrimento de outra: a dimensão
direta, nas ruas e manifestações, a participativa, como no prática orçamentária
que leva este nome, mas também no fortalecimento do espírito associativo, e a
representativa, combatendo o descrédito com que a direita quer recobrir sempre
este espaço. Isto implica a luta pelo papel regulador do Estado, em detrimento
das ideias de um mercado “autorregulável”, e ao mesmo tempo a luta pela maior
transparência deste mesmo Estado, e pela reversão das práticas abusivas de
administração de privilégios que faz parte de seu legado histórico.
É complicado, mas este “ethos” de esquerda implica a afirmação de uma visão
totalizante dos seres humanos, desconstruindo os preconceitos sexuais,
religiosos, sociais, racistas, nacionais, regionais, continentais, culturais
que pretendem “naturalizar” a afirmação da desigualdade e informar as políticas
discriminatórias de minorias, mas também de maiorias, como hoje, por exemplo,
acontece seguidamente nesta Europa de naufrágio da social-democracia, onde ao
lado das políticas de discriminação preconizadas pelas extremas-direitas em
vários países viceja o claro tempo pela democracia que a imposição das
“políticas de austeridade” exige para sua implementação e afirmação hegemônica.
O mais complicado de tudo isto ainda é que isto exige uma contínua alimentação
mútua entre análise e praxis no espaço concreto onde a inserção das múltiplas
esquerdas se dá. De nada adianta, ou melhor, adianta muito pouco afirmar-se uma
concepção que abstratamente prescinda, por exemplo, dos Estados nacionais, se a
garantia dos direitos individuais e coletivos da cidadania se dá através do
jogo dentro e entre estes mesmos Estados.
O internacionalismo que as esquerdas de modo justo preconizam não pode ser
visto como uma constelação abstrata que, das alturas, quase astrologicamente,
governe os passos dos povos do mundo. Este internacionalismo passa por uma
construção concreta, diária e solidária, entre povos que têm uma história
concreta, de choques e desigualdades, heranças de violências muitas vêzes
mútuas, insufladas de fora ou de dentro, que precisam ser neutralizadas para
que se avance a ideia de um compromisso entre iguais que rompa o círculo
vicioso do emprego da força.
Todo este conjunto de ideias não esgota o tema sobre o que é, como e para que
ser de esquerda. Espero que contribua para o prosseguimento da discussão. A boa
discussão, penso eu, é aquela que levanta mais perguntas que estimulem a sua
continuidade do que respostas definitivas que procurem fechar o caminho. Isto
não deve barrar a ação, que deve ser continua. Mas deve situar a compreensão de
que perguntar continuamente também faz parte das ações de esquerda.
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