Por Leonardo Boff
Em alguns lugares da Terra se rompeu, há dias, a
barreira dos 400 ppm de CO2, o que pode acarretar desastres sócio-ambientais de
grande magnitude. Se nada de consistente e coletivamente fizermos, podemos
conhecer dias tenebrosos. Não é que não podemos fazer mais nada. Se não podemos
frear a roda, podemos no entanto diminuir-lhe a velocidade. Podemos e devemos
nos adaptar às mudanças e nos organizar para minorar os efeitos prejudiciais.
Agora se trata de viver radicalmente os quatro erres: reduzir, reutilizar,
reciclar e rearborizar.
Precisamos de uma orientação ética que nos ajude
alinhar nossas práticas para a superação da crise atual. Nesse quadro
dramático, como fundar um discurso ético minimamente consistente que valha para
todos?
Até agora as éticas e as morais se baseavam nas
culturas regionais. Hoje na fase planetária da espécie humana precisamos
refundar a ética a partir de algo que seja comum a todos e que todos a possam
entender e realizar. É o que propunha Paulo Freire com sua Etica Universal do
Ser humano que nós acrescentaríamos do ser humano e da Mãe Terra.
Olhando para trás, identificamos duas fontes que
orientaram e ainda orientam ética e moralmente as sociedades até os dias de
hoje: as religiões e a razão.
As religiões continuam sendo os nichos de valor
privilegiados para a maioria da humanidade. Elas nascem de um encontro com o
Supremo Valor, com a Última Realidade. Desta experiência nascem os valores de
veneração, respeito, amor, solidariedade, compaixão e perdão, fundamentais para
a preservação da vida. Muitos pensadores
reconhecem que a religião mais que a economia e a política é a força central
que mobiliza as pessoas e as leva até a entregar a própria vida (Huntington).
Outros chegam até a propor as religiões como a base mais realista e eficaz para
se construir “uma ética global para a política e a economia mundias” (Küng).
Para isso as religiões devem dialogar entre si. No diálogo acentuar mais os
pontos em comum do que os pontos de diferenciação. Com isso pode se inaugurar a
paz entre as religiões. Esta paz não se basta a si mesma mas deve animar a paz
entre todos os povos e a paz com a natueza e uma paz perene com a Mãe Terra.
A razão crítica, desde que irrompeu, quase
simultaneamente em todas as culturas mundiais, no século 6ª a. C. no assim
chamado tempo do eixo (Jaspers), tentou estatuir códigos éticos universalmente
válidos, baseados fundamentalmente nas virtudes, cuja centralidade ocupava a
justiça. Mas afirma também a liberdade, a verdade, o amor e o respeito ao
outro.
A fundamentação racional da ética e da moral –
ética autônoma – representou um esforço admirável do pensamento humano, desde
os mestres gregos Sócrates, Platão, Aristóteles, passando por Immanuel Kant até
os modernos Jürgen Habermas, Enrique
Dussel e entre nós Henrique de Lima Vaz e Manfredo Oliveira entre outros de
nossa cultura.
Entretanto o nível de convencimento desta ética
racional foi parco e restrito aos ambientes ilustrados. Por isso com limitada
incidência no cotidiano das populações. Mesmo assim está se impondo a justiça
ecológica: tratar de forma adequada os processos naturais para que possam ser
sustentáveis, vale dizer, se manter, se reproduzir e melhorar.
Esses dois paradigmas não ficam invalidados pela
crise atual, mas precisam ser enriquecidos se quisermos estar à altura das
desafios que nos vêm da realidade hoje profundamente modificada.
Faça-se urgente uma ética do cuidado e da
responsabilidade solidária. Para instaurar este tipo de ética precisamos descer
àquela instância na qual se formam continuamente os valores, conteúdo principal
da ética. A ética, para ganhar um mínimo de consenso, deve brotar da base comum
e última da existência humana. Esta base não reside na razão, como sempre
pretendeu o Ocidente. A razão – e isso é reconhecido pela própria filosofia –
não é nem primeiro nem o último momento da existência. Por isso não explica
tudo nem abarca tudo. Ela se abre para baixo de onde emerge, de algo mais
elementar e ancestral: a afetividade e o sentimento profundo. Irrompe para
cima, para o espírito, que é o momento em que a consciência se sente parte de
um todo e que culmina na contemplação e na espiritualidade. Portanto, a
experiência de base não é “penso, logo existo”, mas “sinto, logo existo”. Na
raiz de tudo não está a razão (“logos”), mas a paixão (“pathos”) que se
expressa pela sensibilidade e pelo afeto.
Daí o esforço atual de resgatar a razão sensível e
cordial (Meffesoli,Cortina,Duarte, Muniz Sodré). Por este tipo de razão
captamos o caráter precioso dos seres, aquilo que os torna dignos de serem
apetecíveis. É a partir do coração e não tanto da cabeça que vivenciamos os
valores. E é por valores que nos movemos e somos. Em último termo, está o amor
que é a força maior do universo e o nome próprio de Deus. Essa ética nos pode
engajar em práticas para enfrentar o aquecimento global. O cuidado é uma
expressão do amor, amor que protege, confere descanso, cura feridas passadas e
evita futuras.
Mas temos que ser realistas: a paixão é habitada
por um “demônio” que pode ser destruidor. É um caudal fantástico de energia
que, como águas de um rio, precisa de margens, de limites e da justa medida.
Caso contrário irrompe avassaladora. É aqui que entra a função insubstituível
da razão. É próprio da razão ver claro e ordenar, disciplinar e definir a
direção da paixão.
Eis que surge uma dialética dramática entre paixão
e razão. Se a razão reprimir a paixão, triunfa a rigidez e a tirania da ordem.
Se a paixão dispensar a razão, vigora o delírio das pulsões do puro defrute das
coisas. Mas, se vigorar a justa medida e a paixão se servir da razão para um
auto-desenvolvimento regrado, então pode surgir uma consciência ética que nos
torna responsáveis face ao caos ecológico e ao aquecimento global.
Por ai há caminho a ser percorrido. Para um novo
tempo, uma nova ética. E esta nova ética de cunho universal e salvador é o
cuidado essencial para com tudo o que existe e vive que está atualmente
ameaçado pela voracidade ilimitada humana. Como o cuidado é da essência humana
e por isso se encontra em cada pessoa e em todo o ser vivo, ele pode ser
acordado e ser transformado num atitude consciente e permanente. Desta forma
nos fará ativos face ao aquecimento global, impedindo que ameace nossa
existência nesta planeta, tão pequeno, tão belo e tão radiate de vida em todas
as suas formas.
Ver meu livro Proteger a Terra- cuidar da vida:
como evitar o fim do mundo, Record, Rio de Janeiro 2010.
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